Athos Ronaldo Miralha da Cunha
– Hoje, choro por ser o dia tristemente marcado em
bronze na minha existência – Maneco sussurrou ao caminhar, indeciso, rumo ao
encontro de sua mais dolorosa despedida.
Estava profundamente abalado. Não era a pessoa feliz
de duas semanas atrás na leitura de mais uma das divertidas cartas de Morgana.
A
brisa fria e o tempo fechado tornavam lúgubre a tarde em que Maneco se
despediria de sua bela amada de cabelos e olhos castanhos. Os passos eram
incertos e o coração, um mar de saudade e sofrimento. Vinha de uma noite
maldormida e de uma manhã inteira de viagem. Estava recolhido em um silêncio
generoso e num remorso tardio. Trazia os olhos encharcados de tanta dor. Não
era o mesmo homem que há alguns meses agradecia aos céus por ter encontrado o
grande amor de sua vida. Nessa curta trajetória indo ao encontro da tristeza,
Maneco, percebe que fora um felizardo nos últimos meses.
Ambos chegaram juntos ao balcão da biblioteca pública e
pediram o mesmo livro. Sorriram diante da coincidência.
A atração foi mútua e naquela tarde
nenhum dos dois leu os livros solicitados à atendente da biblioteca. Foram para
as salas de leitura e conversaram longamente. Sorriram e trocaram olhares
maliciosos. Entre eles, sobre a mesa, dois intocáveis exemplares de uma antiga
edição do livro de machado de Assis Memórias
póstumas de Brás Cubas.
Como foi uma agradável tarde,
resolveram que à noite iriam ao cinema. Uma aventura na tela para sacramentar o
dia que havia sido especial para ambos.
Maneco e Morgana encontravam-se
nos mais diversos lugares – universidade, biblioteca, restaurante universitário
e nas praças – e se descobriram com infinitas afinidades. Assim, tornaram-se
amigos e em seguida namorados. Frequentavam, habitualmente, os barzinhos,
cinemas e baladas da cidade. Uma vez ou outra jantavam em um tradicional
restaurante, mas o cardápio não variava entre o galeto e a pizza quatro queijos,
cerveja e água mineral.
A vida foi eternamente maravilhosa
até o dia em que Morgana chegou ao encontro com ares de desolação. Então,
comunicou que estava de mudança. Seu pai havia sido transferido para a sua
cidade de origem. Inclusive, teria que transferir a faculdade.
Maneco não sabia, mas aquele
beijo de despedida no fim de uma noite, seria o derradeiro beijo e a última
visão do rosto de Morgana. Do angelical e sereno rosto de Morgana.
Prometeram-se trocar cartas, não
esqueceriam os e-mails, Twitter e Facebook, mas as cartas seriam especiais. Nas
cartas declarariam o amor de um para com o outro. Pelas cartas escreveriam os
mais sinceros e apaixonados poemas. As cartas seriam mais pessoais, mais
íntimas e a espera pelo carteiro, uma doce e excitante espera. E para selar
esse compromisso, Morgana doou para Maneco a caneta que havia ganhado do avô
por ocasião da aprovação no vestibular. Um presente como prova de seu mais puro
e sincero amor.
Maneco aceitou prometendo devolvê-la
no dia que iria buscá-la para ser sua companheira pela vida afora.
Assim,
nas semanas seguintes, trocaram alguns e-mails e muitas cartas. As cartas de Morgana
eram apaixonadas e bem-humoradas. Um humor inteligente e requintado. As cartas
de Maneco eram, apenas, apaixonadas.
Certo dia, numa noite de relâmpagos,
trovoadas e maus pressentimentos, por volta das vinte horas, Maneco atende um
telefonema.
– Alô... Maneco?
– Sim...
– Aqui quem fala é uma amiga da Morgana.
– Tudo bem?
– Maneco... a Morgana... sofreu um
acidente de carro... um terrível acidente... Maneco...
– Como ela está?
– A Morgana... Maneco... a Mor... gana... não resistiu aos
ferimentos...
– Não!
– A Morgana faleceu...
A notícia havia sido arrasadora. Nada
parecido... nada tão fatal...
Após essas melancólicas reflexões,
colocou a mão por debaixo do paletó e pode sentir a caneta no bolso da camisa –
está como sempre esteve, próxima ao coração – comentou baixinho e foi a passos
largos ao último encontro com sua amada. Estava ligeiramente atrasado, o
cortejo fúnebre subia lentamente uma das alamedas do cemitério.
O vento assobiava pelas muradas e
túmulos. E movimentava freneticamente as árvores. Dos presentes a essa
despedida ouviam-se, apenas, os soluços de compaixão e tristeza. Diante do
ruído das pás e das colheres dos pedreiros, um silêncio nostálgico. Foi nesse
instante que Maneco deu-se conta que perdera Morgana para sempre.
O
pastor encerrou a prece sob os olhares chorosos dos familiares e amigos. Os
operários estavam prontos para colocar as derradeiras colheradas de cimento
para vedar o túmulo. Foi nesse momento que Maneco pediu alguns segundos para
uma derradeira e sofrida homenagem. Cabisbaixo, dirigiu-se para diante do
caixão e depositou serenamente a caneta sobre o esquife de Morgana.
Fez
umas orações em minutos que pareciam séculos e comentou com escassas palavras:
–
Não vou deixar a caneta... deixo meu coração.
Com
a mão trêmula e pesar na alma, pegou a caneta e saiu sem olhar para traz. A
caneta, instrumento de várias e longas cartas de amor, não teria mais
utilidade, mas ficaria ao lado esquerdo do peito. Eternamente.
No
entanto, a vida de Maneco nunca mais foi a mesma, vivia num silêncio e
quietudes absolutos. Todos os dias, por longos meses, dirigia-se até a
biblioteca pública e pedia para a atendente o mesmo livro de Machado de Assis. Às
vezes lia algumas frases buscadas a esmo. Mas na maioria das vezes sequer o manuseava.
Ficava pensativo diante do exemplar sobre a mesa da sala de leitura. Com a
caneta – presente de Morgana – fazia alguns manuscritos que em seguida eram
guardados em uma pasta.
Maneco
sempre pedia o mesmo livro e sendo um dos poucos frequentadores da biblioteca a
atendente comentou que ele poderia deixar o livro sobre a mesa que no dia
seguinte aquele lugar estaria reservado para ele. Maneco sorriu e não disse
nada. Apenas assentiu com a cabeça. Assim, sempre que Maneco chagava o livro já
estava sobre a mesa. A mesma edição antiga do exemplar de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Até o dia em que Maneco não
apareceu mais. E o livro ficou solitário sobre a mesa na biblioteca.
– Hoje, choro por ser o dia tristemente marcado em bronze na minha existência – Maneco sussurrou ao caminhar, indeciso, rumo ao encontro de sua mais dolorosa despedida.