quinta-feira, 26 de março de 2020

Não, obrigado!


Gosto de praia.
O litoral me fascina e a imensidão das águas ajuda e induz a reflexão. Aprecio por demais o entardecer avermelhado e um ventito do oceano nas melenas.
Mas a minha relação com o mar é bem amistosa. Ele lá na dele, no vai e vem das ondas, e eu aqui na areia no vai e vem da cuia. Nos respeitamos mutuamente. O máximo que faço é caminhar na orla e molhar os pés.
Neste quadro o mar tem o predomínio de minha predileção, mas é fundamental para compor essa paisagem um céu azul, areia, dunas, uma avenida e prédios. Trocando os prédios por verde também fica muito bom. 100%.
Estou na areia. Chimarreando contemplo o mar e medito diante da cuia. Essa manhã deveria ser perfeita e tranquila com sol e mar calmo. E mulheres bronzeadas.
Deveria...
Devido ao sem fim de vendedores ambulantes devo ter respondido outro sem fim de “Não, obrigado!”. Mas os vendedores foram os menores dos problemas.
Uma turma chega e toma conta de uma área da areia.  Um toldo. Calculei uns 9 metros quadrados. E logo em seguida a bela jovem do fio-dental verde ligou uma goeluda caixinha preta de som. Axé. Axé. Axé.
Mas o que é ruim pode piorar.
A esquerda e um pouco mais afastada uma família se aproxima e vislumbro o mesmo modelo de caixinha preta. Ouvi um grito “Que tiro foi esse?”. Levei um baita susto, mas logo vi que era a música [sic] que saia da goeluda caixinha preta. E funk pré-escola ribombou na praia a todo vapor. E alguém falou em Jojo Todynho que eu nem sabia que existia.
Sirvo mais um mate e lembro da minha avó: os incomodados que se retirem.
Desmontei o acampamento e me afastei uma distância tal em que o barulho do mar fosse maior que o axé/funk.
Vou servir mais um mate e quem ronca é a térmica. Foi-se a água. Agora não tem jeito, comprei uma caipiroska de maracujá. Retomei a leitura do “Rinha de gatos – Madri 1936” de Eduardo Mendoza.  
– Vai uma caixa de som aí moço?
– Não, obrigado!

quinta-feira, 19 de março de 2020

O zapzap das flores


Não sei porque cargas d´água alguém me adicionou em um grupo do Zapzap para falar de flores. Fiquei imaginando o que eu falaria de flores... veio em minha mente o premiado curta “Ilha das flores”, o sabonete “Alma de flores” e o Flores da Cunha. E parei por aí.
Não saí imediatamente para não ser mal-educado. E eu poderia aprender algo sobre flores. Algum manejo para deixar meu jardim mais florido. Sei lá, eu poderia aprender a cultivar rosas.
Na manhã do dia seguinte acordei com uma avalanche de mensagens no celular.
Bom-dia! Bom-dia! Bom-dia!
Durante todo o dia ninguém falou de flores. Uma guria postou a foto de girassóis com abelhas. Linda! Outra com borboletas e flores desfocadas ao fundo. Bela foto. Dona Margarida postou a foto de uma samambaia que, aliás, não tem flores. Mas relativizei, afinal era a Dona Margarida... uma flor.
Lá pelas 10 horas da noite começou outra saraivada de mensagens.
Boa noite! Boa noite! Boa noite!
Então eu fui no YouTube e copiei o linque da música “Pra não dizer que não falei das flores” e colei no grupo. Pensei que não poderia ser uma boa ideia e, realmente, não foi. Ato contínuo, seguiram os comentários exacerbados. Estávamos em período eleitoral e os ânimos acirrados.
#Bolsonaro17!
Vai pra Cuba!
Pão com mortadela!
13 de cabo a rabo – e carinhas sorridentes.
Cirão da massa 12.
Fiquei na moita e não comentei nada. Seriam estas as flores do mal? Nestas horas o silêncio é a melhor solução. Na manhã seguinte a mesma avalanche do dia anterior. Alguns incrementavam as postagens com emojis floridos.
Bom-dia! Bom-dia! Bom-dia!
E durante todo o dia ninguém falou das flores. Apenas o comentário e foto sobre Ora-pro-nobis dizendo que tinha muita proteína e era excelente alimento. Confesso que não sabia. Tinha certeza que aprenderia alguma coisa.
A noite a Dona Margarida postou a foto de uma erva-daninha. E um ramo de Macela colhida na páscoa passada. E a mesma ladainha.
Boa noite! Boa noite! Boa noite!
Então postei a foto de uma bandeja com laranjas, goiabas, bananas, bergamotas e maçãs. E a foto da ex-primeira-dama, Marcela, sorridente.
De vereda alguém retrucou.
Este grupo é para falar das flores! Juntando ao texto emojis raivosos.
Fui até a cozinha peguei um copo e enchi de leite desnatado, bati a foto e postei.
– Um copo de leite, pessoal! – comentei e em enchi a postagem com kkkkkk.
– Tu tá de brincadeira, né – alguém comentou.
Postei uma carinha risonha e fui dormir. Na manhã seguinte a mesma avalanche.
Bom-dia! Bom-dia! Bom-dia!
E ninguém falou de flores. Só que aconteceu o seguinte. Por volta das 13:30 horas, logo após o horário político, Dona Margarida teve a brilhante ideia de dar “boa tarde” ao grupo, toda faceira. E foi outra avalanche.
Boa tarde! Boa tarde! Boa tarde!
Athos saiu do grupo.

quinta-feira, 12 de março de 2020

A prostituta e os pés de meu pai


A história é muito antiga. Sobre um relacionamento que talvez tenha acontecido lá na década de 40 do século passado. O relato interessante, pois não é todo dia que uma prostituta comenta sobre os bonitos pés do cliente. No caso, meu pai.
Importante salientar que as minhas tias também tinham a mesma opinião da prostituta – os pés do velho eram bonitos –, mas nos encontros familiares nada se comentava. Isso, eu soube muito tempo depois.
Consta, também, que a mulherada do povoado tinha interesse e curiosidade sobre se realmente os pés do meu pai eram lindos. Elas enchiam as arquibancadas nos jogos de futebol de domingo. O velho jogava de atacante do primeiro quadro e de goleiro no segundo. Todas interessadas nos belos pés do craque. Tudo isso por conta do singelo e despretensioso comentário de uma prostituta. O desapontamento era geral: no campo de jogo nunca ninguém viu os pés do velho sem chuteiras e meias.
A bem da verdade eu não sei como surgiu essa história. Como saber, depois de longas décadas, se uma prostituta havia comentado sobre os pés de um cliente? Somente se o cliente contar para alguém e essa pessoa repassar para os demais amigos, familiares e fofoqueiros em geral.  Dúvida que jamais será esclarecida.
Se, realmente, uma prostituta elogiou os pés de meu pai, deve ter sido no aconchego de uma tarde no catre e ele comentou com amigos, em tom de brincadeira. E o assunto chegou nas rodas de pingas nos botecos e nas rodas de mate-doce das tias – neste caso, tias mesmo –, irmãs do meu pai. Devo confessar que nunca observei os pés do velho com a intenção de avaliar sua belezura.
Se os pés de meu pai era tudo aquilo que contam, por uma questão de DNA ou hereditariedade, os meus também devem ser bonitos. Mas... essa história promete...
Vou dar um espaço para separar o relato em duas partes.

Bom, até agora essa crônica é aparentemente ficcional, fiquem tranquilos parentes. Tudo fruto de pensamentos borbulhantes de quem não tem o que fazer. E precisa preencher as horas.
A bem da verdade, bonitos são os meus pés. Eles foram elogiados e admirados uma única vez há muito tempo. Prostituta? Segredo de estado.
Há quarenta anos, num veraneio no Passo do Angico ali para as bandas de São Pedro do Sul, uma guria achou os meus pés bonitos. Lindos... lindos... lindos de morrer. Fazer o quê, né? Gosto é gosto e as opiniões devem ser respeitadas. E, naquela época, eu tinha um corpo atlético e era faixa azul em Taekwondo. A guria era uma loiraça esbelta de abrir caminhos nas águas do rio Toropi. 
Enfim, eu não poderia escrever uma crônica “A guria e os meus pés bonitos” ficaria sonsa, sem a mínima graça. E eu não preciso ficar me autoelogiando num texto.
Então, se os meus pés são bonitos os do meu pai também eram. Inseri o velho na história. E lá pelos anos 30 ou 40 do século passado não seria uma namoradinha de portão que iria atentar nos pés do pretendente.  Assim, coloquei o velho na zona do meretrício e uma personagem prostituta para apimentar a história da família. E aí surgiu esse belo título “A prostituta e os pés de meu pai”. A crônica ficou mais tensa, mais densa e bem-humorada. E os meus pés, depois de tantos anos, novamente bonitos.