Athos Ronaldo Miralha da Cunha
Agripino Saraiva, peão de estância aposentado e
maragato flor de guasca, acalentava o sonho de viajar de avião. Nem que fosse
uma vez, não queria morrer sem embarcar numa “geringonça daquelas” – como se
referia à aeronave. Não tinha medo, pois quem montou em baguais e peleou no
ferro branco não poderia ter medo das alturas.
Como todo índio grosso, moldado a facão nas lides
do campo, não entendia dessas tecnologias de compras pela internet. Pensava que
era só chegar ao aeroporto e comprar uma passagem, como fazia quando queria
visitar umas primas em São Borja. Ia até a rodoviária e no guichê adquiria o
bilhete. Mas avião era diferente, tinha que ser pela internet.
A solução foi recorrer ao Agripininho – o filho,
embora com 28 aninhos, era chamado de Agripininho – que conhecia bem essas modernidades
e vivia mexendo num aparelhinho preto cheio de letrinhas. Agripininho levou um
susto quando o pai falou que queria viajar para o Rio de Janeiro. Depois dos
argumentos que ele não conhecia ninguém na Cidade Maravilhosa e a violência
campeava frouxa, bala perdida e sequestros, o velho Agripino mudou de ideia.
Iria a Brasília. Novamente o filho argumentou que ele não tinha amigos e nem
parentes em Brasília. Então, o Agripino tirou a carta da manga.
– Tenho sim, a Dilma. Vou visitar da presidente.
– Tá delirando, velho. Desde quando tu conhece a
Dilma?
– Ora, lutamos juntos contra os milico. Tá feito
vou ver a Dilma. Pode comprar.
Outro obstáculo para a compra da passagem foi no
momento de colocar o número do cartão de crédito para finalizar a compra.
– Que cartão?
Situação resolvida com o número do cartão do genro.
Agripino vestiu a melhor bombacha e se apresentou
totalmente pilchado na estação rodoviária. A guaiaca forrada – era um cara
prevenido –, uma mala de garupa, chapéu, bota e espora. Claro, estreando um
lenço vermelho que enchia o peito. Não adiantou o Agripininho indagar sobre as
esporas, que ele não iria passar no detector de metais. A resposta foi taxativa
dizendo que não sabia andar de botas sem as esporas.
– Eu não tiro as esporas nem para dormir...
Estava cheio de recomendações. Quando o ônibus
chegar em Porto Alegre, não deveria descer, pois o final da linha era no
aeroporto. Chegando lá deveria procurar a moça da Azul para fazer o check in para embarque.
– Pra que cheque se paguei em dinheiro pro Arnaldo
– o genro –, não foi Arnaldo?
– Isso não vai dar certo... seja o que Deus quiser
– comentou o genro.
– Pai, não esqueça, chegando no aeroporto procure a
moça da Azul. Ela vai ajudar o senhor. Ah! Leve esse celular, se precisar falar
comigo, abra a tampinha e aperte o número dois, entendeu?
– Claro, aperto o número dois.
A entrada de Agripino no aeroporto Salgado Filho
foi triunfal. Um autêntico gaúcho devidamente vestido com a indumentária
tradicional foi motivo de atenção. Foram várias fotos, selfies solicitadas por
pessoas das mais diversas localidades. Estranhou aquela vareta com uma máquina
fotográfica na ponta. Achou meio afrescalhada – coisa de cola-fina –, mas não
quis passar por grosso da fronteira e foi curtindo seu momento de celebridade, bombeando,
disfarçadamente, a tal moça da Azul. Batia esporas pelo aeroporto.
Depois de algumas idas e vindas conversando com
tudo que era moça de azul pelo saguão do aeroporto, uma alma caridosa tentou
ajudar nosso “marinheiro de primeira viagem”.
– Deixa eu ver o seu voucher.
– Vou, tchê. Para Brasília! – falou de pronto.
– Aquele papelzinho... o bilhete impresso.
–Ah! – buscou o papel no bolso da guaiaca.
Agripino descobriu naquele momento que seu voo era
da Azul e que deveria se deslocar para o outro terminal do aeroporto. A
contragosto, por conta da palavra terminal, aceitou a indicação do vigilante,
que o acompanhou até a parada do ônibus que conduz os passageiros ao terminal
da Azul. Agripino chegou batendo esporas diante do guichê da Azul para fazer o
check in.
– Bagagem de mão? – pergunta a atendente.
– Só a mala-de-garupa, guria.
Polêmica no embarque: as esporas de prata.
Os policiais ficaram divididos em deixar embarcar
com as esporas – espora poderia ser usada como arma? – mas diante da
indumentária e autenticidade do gaúcho e da relíquia de prata concordaram, mas
teria que levá-las na mala-de-garupa. Agripino fechou o cenho e coçou o bigode.
E o policial indicou que colocasse tudo que tivesse de metal na bandeja.
Agripino colocou a guaiaca, chapéu, esporas, um relógio – ômega ferradura – falou
em alto e bom som. E um par de alianças, pois era um viúvo saudoso da esposa.
Ao cruzar a porta detectora de metais, buzinou o
alarme. Agripino tirou um colarzinho com a cruz missioneira e uma pulseirinha.
Novamente a porta acusou a presença de metais.
– Tem certeza que o senhor não tem nada mais de
metal?
– Ah, sim – e puxou a faca da bota, uma solingen
com cabo de prata. – Meu bisavô degolou muito chimango com ela em 93.
Após o breve momento de pânico por conta de uma
faca o policial tenta manter a calma.
– Senhor...
– Agripino Saraiva, seu criado.
– Seu Agripino, o senhor não poderá embarcar com
essa faca. É proibido qualquer tipo de objeto que perfura e corta a bordo da
aeronave. O senhor está entendendo? Para embarcar terá que abandonar a sua faca
naquele recipiente.
Quando Agripino tomou ciência que perderia a faca,
que não a teria mais de volta, foi taxativo.
– Não senhor, não vou deixar a faca de meu bisavô
em lugar nenhum. Essa joia que degolou chimangos em 93. Mas de jeito nenhum.
Bem capaz!
Os policiais foram irredutíveis eram as normas a
serem seguidas, não adiantou o missioneiro argumentar que estava viajando para
se encontrar com a presidente Dilma, que haviam lutados juntos nos tempos dos
milicos no poder. Com a faca, não embarcava. Também falou que era amigo de infância
do governador. Foram parceiros de pescarias lá nas barrancas do rio Uruguai em
São Borja. A resposta era sempre a mesma: com a faca, não embarcava.
Agripino estava perdendo a paciência.
– Mas que cambada de chimangos – murmurou para si e
chairou a faca no próprio braço. Hesitou uns momentos e guardou a solingen na
bota.
Suas expectativas foram desmoronando por conta da
faca de prata do bisavô, o degolador da campanha de 93. Saiu esbravejando pelo saguão
do aeroporto e entrou num táxi.
– Toca para a casa do governador...
– O palácio Farroupilha?
– Onde o governador mora?
Não abriu a boca durante toda a corrida. Pagou o
taxista com moedas de um real e postou-se em frente ao palácio. Estava em
dúvida, pois o guri era um simples amigo lá das missões e agora estava
ostentando num palácio. Mas entrou, batendo esporas, porta adentro. Em segundos
foi interpelado por dois seguranças. Novamente alguns empurrões de parte a
parte e o Agripino se acalmou.
– Quero falar com o governador.
– O governador só recebe com hora marcada.
– O chimanguinho – em tom irônico –, o senhor não está
entendendo, eu quero falar com o governador.
– O senhor que não está entendendo, o governador só
recebe pessoas que estão na agenda.
– Diz para o teu patrãozinho que Agripino Saraiva
quer falar com ele.
– O governador só recebe pessoas que estão na
agenda.
– Meu caro, nós fomos amigos de infância lá em São Borja.
Nós fomos amigos, muito mais que amigos, quase irmão, eu, o governador e o irmão
dele, o Adelminho. Nós pescamos no rio Uruguai.
– Gauchão, que eu saiba o governador não é de São Borja,
é de Caxias do Sul e não tem um irmão chamado Adelminho.
– O ignorante – Agripino estava possesso. – Todo o
Brasil sabe que o governador Tarso nasceu em São Borja... taipa.
– Só tem um detalhe, o sabichão, o nome do
governador é Sartori. Tarso é ex-governador. Palhaço!
– Bah!
Com alguns safanões os seguranças colocaram o
missioneiro porta afora do palácio.
– Vá procurar a tua turma!
Agripino sentou-se em um banco da praça em frente
ao palácio e discou o número dois no celular. Seguindo orientações de
Agripininho se precisasse falar com ele ou precisasse de ajuda.
– Alô, Agripininho? Estou aqui em frente a casa do
governador, pode vir aqui me buscar?
– !?.
Agripino pegou umas laranjas da mala-de-garupa
descascou com a faca de prata do bisavô degolador de chimangos e ficou saboreando
a doçura da vida em frente ao palácio Farroupilha.
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