Athos Ronaldo Miralha da Cunha
Joaquim Francisco era o fiel ajudante
no bolicho do Gallo, mais precisamente nas jogatinas numa salinha nos fundos do
boteco entre os estoques de mantimentos num ambiente de pouca luz.
O nome do auxiliar era uma
homenagem de seu velho pai – um carreteiro maragato de alcunha Tonhão da
Carreta – ao líder libertador Joaquim Francisco de Assis Brasil. Mas para a
turma da carpeta ele era, apenas, o Jota Chico ou Tonhãozinho. E o Jota Chico
não era dado às atividades partidárias. Usava qualquer tipo de lenço, menos os
vermelhos e os brancos. Nos últimos tempos estava sempre com um lenço preto
para reverenciar a memória de seu pai – o velho Tonhão da Carreta – morto com
dois balaços, um na testa e outro nos bagos em umas escaramuças envolvendo duas
percantas e um castelhano de Corrientes nos arredores do povoado. E a partir da
morte do velho Tonhão da Carreta exigiu ser chamado por Tonhãozinho.
Nos carteados do Gallo sempre havia
maragatos e chimangos apostando até a alma por conta das cachaças, graspa e
conhaques servidos pelo prestativo funcionário do Gallo. O dono do bolicho, seu
Gallo, achou conveniente que um gaúcho neutro e valente seria o atendente perfeito
para essas perigosas rodadas. Tonhãozinho não tomaria as dores de ninguém numa
provável rusga. Mulher não poderia entrar no recinto das carpetas, sob hipótese
nenhuma, aquele lugar era pra macho. Recomendação do Gallo. Tonhãozinho seria o
fiscal das apostas, serviria o trago para a turma e, por conta disso, também
seria o responsável pela ordem e segurança do estabelecimento. Logicamente, que
a incumbência maior seria de apaziguar os ânimos em um possível desentendimento
por alguma dívida de jogo. O seu Gallo não permitia alvoroço e estripulias. Embora
as recomendações do bolicheiro, Tonhãozinho também provava da água que
passarinho não bebe. E, às vezes, provava até demais.
A jogatina corria solta e
tranquila. Dois maragatos e dois chimangos e três garrafas de Três Fazendas
consumidas. Tonhãozinho estava sonolento, escarrapachado por cima de uns sacos
de farinha contrabandeada da Argentina – negócio que o seu Gallo fazia com
muita discrição –, quando o silêncio foi quebrado por um berro que retumbou na
saleta. Despertou Tonhãozinho e espantou um gato preto que ronronava em baixo
da mesa.
– Tem cinco ás nessa merda de baralho!
Caralho! – gritou um dos maragatos e cravou o punhal na mesa.
Os chimangos saltaram para trás
esparramando cadeiras e um deles quase caiu sentado no colo de Tonhãozinho.
– Tá me estrando compadre! – e
já estava de punhal em punho.
Antes que corresse o ferro
branco Tonhãozinho puxou os dois brigões para fora do estabelecimento. Noite
alta e o seu Gallo não gostava de arruaças no bolicho. Aguentava os borrachos,
mas dentro do sossego noturno dos vizinhos. Facas eram permitidas, pois os
carpetistas gostavam de fazer um palheiro e enfumaçar o ambiente, mas revólver
jamais. Deus o livre uma morte no boteco do Gallo. O velho não queria encrenca
com o delegado Pedroso – antigo desafeto –, justamente por conta do contrabando
de farinha.
Quando um dos jogadores acusou
que no baralho havia cinco ases, o constrangimento foi geral. E estremeceram-se
os ânimos. Um punhal cravado na mesa era sinal de alerta e seu Gallo já estava
recostado em sua residência, vizinha do boteco. Embora Tonhãozinho estivesse à meia-guampa
e praticamente nos braços de Morfeu, foi astuto suficiente para retirar pelo
colarinho os dois que estavam próximos das vias de fato com xingamentos a
árvore genealógica de ambas as famílias, principalmente a honra das mulheres.
Com um pontapé no traseiro de
cada um, pôs os carpeteiros porta afora com o rabo entre as pernas. Noite alta
e dois sujeitos, um peão de estância e um tropeiro, estavam estatelados no meio
da rua, sujos de terra e com cachaça até os cornos. Maldizendo o bêbado Tonhãozinho
e a falta de sorte. Prometendo a desforra.
– O patrão não gosta de
entreveros aqui no bolicho e fechem o bico para não acordar a vizinhança –
falou Joaquim Francisco esfregando as mãos.
Tonhãozinho ficava possesso
quando havia brigas. Era uma pessoa forte, e com algumas doses de cana na
cabeça também não era flor que se cheirasse. E não levava ninguém para
compadre. Ainda mais bêbedos que atazanassem a paciência. Borracho bom é
borracho quieto. Barbados e bêbados arruaceiros eram tratados a chute na bunda e
postos para o olho da rua.
– E vocês dois aí, estão
olhando o quê? Tratem de ir embora ou querem também uma ajudinha? – falou
voltando-se para os outros dois que ficaram dentro do bolicho.
– Calma seu Joaquim Francisco!
Já estamos saindo – quando a coisa encrespava Tonhãozinho era promovido a seu
Joaquim Francisco, como por encanto.
Após ter colocados os brigões
para fora do estabelecimento, emborcou uma dose de cana e ficou observando seu
local de trabalho. Rodeado de sacos de feijão, farinha, fumo em rolo, conservas
e um sem fim de garrafas de cachaça e conhaque. Atrás do balcão num pedaço de
pau atravessado estavam pendurados as adormecidas linguiças e na prateleira uns
queijos da colônia. Então, percebeu que sua vida era em volta de bêbados e
desocupados numa espelunca de bolicho ou nas bibocas com prostitutas. A sina de
Tonhãozinho era beber cachaça em rodadas de carpetas. E apartando brigas de arruaceiros
e chutando bundas de bêbados nas madrugadas.
Tonhãozinho examinou o baralho.
Sentou em uma das cadeiras e começou a brincar com as cartas. Embaralhando,
fazendo as cartas correrem de uma mão para a outra.
– Um bando de babacas esses
merdas. Levaram duas horas para descobrir cinco ases nesse baralho – falou em
voz alta, solitário na penumbra do recinto dos jogos.
Tonhãozinho recolocou o ás que
sobrara no baralho original guardado no bolso de sua bombacha e colocou no
armário. As demais cartas ficaram esparramadas sobre a mesa.
Emborcou mais um liso de
cachaça e se atirou por cima de uns sacos de feijão.
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