Os hábitos de Valdemar
eram simples, como qualquer trabalhador comum desse país. Poucos momentos de
lazer e muitas horas dependendo dos precários transportes públicos. Uma vida
recatada e de clausura: em casa, nos ônibus, nos trens e no trabalho. Essa era
a rotina de Valdemar.
E para quem trabalha
horas a fio a melhor parte do dia é o fim de expediente e o melhor dia da
semana a sexta-feira. Assim, como pessoas dignas e honestas, todo o trabalhador
tem o direito de celebrar a vida e os momentos especiais. E essas ocasiões
requerem uma bebida especial, um tinto, não importando se o vinho tenha
procedência da França, Mendoza ou da Quarta Colônia. Não importa se o tinto está
no Bourbon Shopping ou no boteco da esquina. Não importa se vem numa garrafa
personalizada com produção de origem ou num garrafão de cinco litros. O
importante é que uma data especial seja celebrada com vinho.
O esforço é
recompensado com uma pequena extravagância. E foi com essa ideia que Valdemar
encerrou o expediente daquele dia. Lavou o rosto e puxou três folhas de papel-toalha
para secá-lo. Em frente ao espelho ajeitou algumas pontas de sua melena
prateada. Valdemar era o supervisor dos faxineiros e vigilantes de uma agência
bancária. Um funcionário responsável e prestativo. Final de turno, mais uma
jornada de trabalho que findava. Estava ansioso, tinha que tomar logo o rumo da
casa, mas antes iria comprar um presente para Joaquina e uma garrafa de vinho
no mercadinho do Zé Brasinha. O dia que findava era justamente o dia de suas
bodas, aquele 22 de julho era a data de seu trigésimo aniversário de casamento.
Bodas de pérolas.
Três filhos crescidos,
um chalezinho de duas águas quitado e um carrinho para passeios nos finais de
semana. A grana era pouca, mas não podia se queixar, tinha uma vida
razoavelmente tranquila. Modesta, mas tranquila, sem os percalços das dívidas por
que eram acometidos alguns colegas de serviço. Valdemar era controlado nas suas
parcas finanças pessoais. Alguns colegas o chamavam de mão-de-vaca, mas ele era
uma pessoa realista e centrada. Nos domingos Valdemar e Joaquina gostavam de
passear no campus da Universidade. Lá, sentiam-se realizados. Fora na
universidade que os três filhos se formaram. Com muito esforço os filhos
cursaram uma graduação e um deles o mais novo, estava cursando pós em
Zootecnia. Teria um filho doutor.
– Boa tarde, Zé
Brasinha! – foi a saudação de Valdemar ao bodegueiro.
– O que vamos levar
hoje, seu Valdemar?
– Meu amigo, hoje,
preciso de um vinho. Vou comemorar trinta anos de casado. Quero um vinho
especial para essa noite. A Joaquina vai fazer uma macarronada. E o estagiário
lá do banco disse que massa combina com vinho tinto.
Zé Brasinha acompanhou
Valdemar até a estante dos vinhos. Sugeriu um vinho de garrafão oriundo de
Caxias do Sul. Também mostrou outro de Bento Goncalves. Mas Valdemar não iria
encher a cara de vinho. Cinco litros de vinho era demais. Os filhos iriam tomar
cerveja, o vinho era para ele e a mulher.
– Este aqui, Valdemar,
o vinho para essa noite especial – e alcançou a garrafa.
Um Quinta do Morgado da serra gaúcha. Vinho tinto de mesa bordô meio
seco. Valdemar pegou a garrafa, manuseou e viu que o preço estava dentro do que
pretendia gastar R$ 9,25. E com atenção leu o que estava no rótulo: “vinho
elaborado com uvas York Madeira selecionadas e colhidas manualmente. Conhecida
no Brasil como Bordô, esta uva tem origem na América do Norte. De aroma
frutado, é a base de nova linha de vinhos Fante York madeira”.
– Parece bom, vou
levar. Não estou bem lembrado, mas acho que tomamos esse vinho no verão passado
lá no litoral. A noite na praia um vinho é tudo de bom, seu Brasinha. Pode
embrulhar.
A tragédia não dá
tréguas e não escolhe o melhor dia e horário. Vem de inopino e alcança os
desavisados como um tufão. O inesperado não pede licença e não dá bom dia e não
manda aviso prévio. O destino não foi condescendente com o jantar de bodas de pérolas
de Valdemar e traiu seus anseio e felicidade. A noite que pretendia ser uma das
mais marcantes de sua vida, comemorar com um simples macarrão e um vinho bordô,
suas bodas de 30 anos de casado, foi interrompida pela fatalidade. Distração de
Valdemar? Relaxamento após um dia estafante de trabalho? Pode ser, mas o fato é
que na movimentada avenida, na hora do rush, alguém não respeitou o sinal.
Ninguém viu e ninguém fez nada. Tão violento e tão rápido que pegou a todos
desprevenidos, um relincho de pneus no asfalto e um pânico geral no cruzamento
da avenida São João. O corpo de um trabalhador estendido no chão de asfalto.
Fatal para Valdemar. Na mochila os mantimentos estavam intactos: dois pacotes
de massa, dois pacotes de queijo ralado e uma garrafa de vinho, Quinta do Morgado da serra gaúcha, e a
nota fiscal da bodega do Zé Brasinha. O burburinho tomou conta das duas
avenidas e alguém sugeriu que procurassem o mercadinho que constava na nota
fiscal. E foi, justamente, o Zé Brasinha o encarregado de levar a notícia aos
familiares.
Joaquina não estudara.
Vivia para a família, orgulhava-se de ter os filhos na universidade. Sempre
comentava que daria aos filhos o que nunca tivera e resumia numa única palavra:
estudo. Valdemar tinha a mesma percepção da esposa e também delineou sua vida
no sustento e educação dos três guris. No dia do nascimento a vida já está
projetada. O filho do rei já nasce predestinado ao trono. O filho do banqueiro
sabe que vai estudar em Harvard. O pobre sabe que tem de superar inúmeras
adversidades e a concorrência para o sucesso é desleal. Teria que ter muita
persistência e sem descanso. Valdemar trabalhava, inclusive, nos finais de
semana fazendo bico em festas e baladas. Mas como vimos o destino é ingrato.
Diante dos olhos fixos
de Joaquina a vida era passada em preto e branco. Chuviscos de memória varando
as fronteiras do tempo. Lembranças distantes numas imagens difusas do passado.
Quando recebeu a
notícia do atropelamento e morte do esposo, Joaquina permaneceu em estado de
choque. Não acreditava no que estava acontecendo. Uma noite tão planejada com
carinho e dedicação para confraternizar com os filhos e o marido fora
abruptamente destruída pela morte de Valdemar. Era a desconstrução de uma
história, o desencanto dos sonhos. Num primeiro momento não derramou uma
lágrima sequer, tamanho era seu espanto, sentou-se na cabeceira da mesa –
parcialmente posta para a janta – e ficou ali, pensativa diante de uns pacotes
de massa, queijo ralado e uma garrafa de vinho tinto.
Em estado de torpor
Joaquina lembra do primeiro aniversário de casamento, as bodas de papel. Ela
estava grávida do primeiro filho e Valdemar chegou em casa, de tardezinha após
o serviço, com um buquê de flores e uma garrafa de vinho. Não lembrava qual era
o vinho, mas tinha certeza, era tinto. Repassando a vida até então concluiu que
fora feliz. Simples, com muito sacrifício, mas feliz. Não havia muito que
reclamar. Um marido dedicado e três filhos do bem – como costumava dizer –, criados
com carinho. Joaquina não era muito exigente, gostava de fazer e sonhar com
algo mais. Certa feita, numa colônia de férias numa praia, Joaquina, Valdemar e
os filhos sonharam em morar e trabalhar na praia. Teriam a disposição o azul do
mar o ano todo. Quem sabe abriria um bar para servir petiscos aos turistas, um
salão de beleza ou uma confeitaria. Ramos de negócio que sempre eram lucrativos
no litoral. E concluíram em conjunto que a mudança para a praia seria depois da
aposentadoria de Valdemar e os filhos encaminhados. Então, a partir daquelas
férias de verão Joaquina passou a sonhar com o dia que se mudaria para o litoral.
Todos os anos subsequentes retornaram a mesma praia para alimentar os mesmos
sonhos. Na última vez estiveram, apenas, os dois. Os filhos estavam estudando
ou se preparando para concursos e optaram por ficar em casa. Joaquina e
Valdemar prolongaram o período e desfrutaram uns dias a mais na praia.
Decidiram: com os filhos crescidos e a aposentadoria logo nos meses seguintes,
mudariam para o litoral no fim do ano. A próxima temporada de verão, eles estariam
domiciliados na praia.
As recordações
estancaram. O tempo é muito curto para prolongar reminiscências e a realidade é
muito cruel para os sonhadores, Joaquina volta à realidade e vê em sua frente
os filhos ao redor da mesa. Não havia palavras a dizer, apenas, colocar uma blusa
preta e velar o marido. Mas Joaquina não se entregaria com facilidade diante da
cruel existência. Levantou-se e começou a preparar a janta. Colocou a massa na
panela. Cortou tomates e alface e deixou a mesa pronta para a janta.
Abriu o vinho e serviu
um copo para cada um dos filhos e saborearam a massa comemorativa aos trinta
anos de casada. As bodas de pérolas. Na sala de jantar, apenas, o ruído das
facas e dos garfos nos pratos de porcelana. Joaquina encerrou a refeição, tomou
o último gole de vinho e levantou-se. Retirou-se para o quarto e voltou com uma
echarpe preta sobre os ombros e uma bolsa a tiracolo.
– Vamos que hoje a
noite vai ser longa. Pois não é todo dia que a gente completa bodas de pérolas.
[*] Conto classificado
no 3º Concurso Nacional de Contos de Santo Ângelo-RS
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