domingo, 8 de fevereiro de 2015

Cinco ases na mesa



Athos Ronaldo Miralha da Cunha

Joaquim Francisco era o fiel ajudante no bolicho do Gallo, mais precisamente nas jogatinas numa salinha nos fundos do boteco entre os estoques de mantimentos num ambiente de pouca luz.
O nome do auxiliar era uma homenagem de seu velho pai – um carreteiro maragato de alcunha Tonhão da Carreta – ao líder libertador Joaquim Francisco de Assis Brasil. Mas para a turma da carpeta ele era, apenas, o Jota Chico ou Tonhãozinho. E o Jota Chico não era dado às atividades partidárias. Usava qualquer tipo de lenço, menos os vermelhos e os brancos. Nos últimos tempos estava sempre com um lenço preto para reverenciar a memória de seu pai – o velho Tonhão da Carreta – morto com dois balaços, um na testa e outro nos bagos em umas escaramuças envolvendo duas percantas e um castelhano de Corrientes nos arredores do povoado. E a partir da morte do velho Tonhão da Carreta exigiu ser chamado por Tonhãozinho.
Nos carteados do Gallo sempre havia maragatos e chimangos apostando até a alma por conta das cachaças, graspa e conhaques servidos pelo prestativo funcionário do Gallo. O dono do bolicho, seu Gallo, achou conveniente que um gaúcho neutro e valente seria o atendente perfeito para essas perigosas rodadas. Tonhãozinho não tomaria as dores de ninguém numa provável rusga. Mulher não poderia entrar no recinto das carpetas, sob hipótese nenhuma, aquele lugar era pra macho. Recomendação do Gallo. Tonhãozinho seria o fiscal das apostas, serviria o trago para a turma e, por conta disso, também seria o responsável pela ordem e segurança do estabelecimento. Logicamente, que a incumbência maior seria de apaziguar os ânimos em um possível desentendimento por alguma dívida de jogo. O seu Gallo não permitia alvoroço e estripulias. Embora as recomendações do bolicheiro, Tonhãozinho também provava da água que passarinho não bebe. E, às vezes, provava até demais.
A jogatina corria solta e tranquila. Dois maragatos e dois chimangos e três garrafas de Três Fazendas consumidas. Tonhãozinho estava sonolento, escarrapachado por cima de uns sacos de farinha contrabandeada da Argentina – negócio que o seu Gallo fazia com muita discrição –, quando o silêncio foi quebrado por um berro que retumbou na saleta. Despertou Tonhãozinho e espantou um gato preto que ronronava em baixo da mesa.
– Tem cinco ás nessa merda de baralho! Caralho! – gritou um dos maragatos e cravou o punhal na mesa.
Os chimangos saltaram para trás esparramando cadeiras e um deles quase caiu sentado no colo de Tonhãozinho.
– Tá me estrando compadre! – e já estava de punhal em punho.
Antes que corresse o ferro branco Tonhãozinho puxou os dois brigões para fora do estabelecimento. Noite alta e o seu Gallo não gostava de arruaças no bolicho. Aguentava os borrachos, mas dentro do sossego noturno dos vizinhos. Facas eram permitidas, pois os carpetistas gostavam de fazer um palheiro e enfumaçar o ambiente, mas revólver jamais. Deus o livre uma morte no boteco do Gallo. O velho não queria encrenca com o delegado Pedroso – antigo desafeto –, justamente por conta do contrabando de farinha.
Quando um dos jogadores acusou que no baralho havia cinco ases, o constrangimento foi geral. E estremeceram-se os ânimos. Um punhal cravado na mesa era sinal de alerta e seu Gallo já estava recostado em sua residência, vizinha do boteco. Embora Tonhãozinho estivesse à meia-guampa e praticamente nos braços de Morfeu, foi astuto suficiente para retirar pelo colarinho os dois que estavam próximos das vias de fato com xingamentos a árvore genealógica de ambas as famílias, principalmente a honra das mulheres.
Com um pontapé no traseiro de cada um, pôs os carpeteiros porta afora com o rabo entre as pernas. Noite alta e dois sujeitos, um peão de estância e um tropeiro, estavam estatelados no meio da rua, sujos de terra e com cachaça até os cornos. Maldizendo o bêbado Tonhãozinho e a falta de sorte. Prometendo a desforra.
– O patrão não gosta de entreveros aqui no bolicho e fechem o bico para não acordar a vizinhança – falou Joaquim Francisco esfregando as mãos.
Tonhãozinho ficava possesso quando havia brigas. Era uma pessoa forte, e com algumas doses de cana na cabeça também não era flor que se cheirasse. E não levava ninguém para compadre. Ainda mais bêbedos que atazanassem a paciência. Borracho bom é borracho quieto. Barbados e bêbados arruaceiros eram tratados a chute na bunda e postos para o olho da rua.
– E vocês dois aí, estão olhando o quê? Tratem de ir embora ou querem também uma ajudinha? – falou voltando-se para os outros dois que ficaram dentro do bolicho.
– Calma seu Joaquim Francisco! Já estamos saindo – quando a coisa encrespava Tonhãozinho era promovido a seu Joaquim Francisco, como por encanto.
Após ter colocados os brigões para fora do estabelecimento, emborcou uma dose de cana e ficou observando seu local de trabalho. Rodeado de sacos de feijão, farinha, fumo em rolo, conservas e um sem fim de garrafas de cachaça e conhaque. Atrás do balcão num pedaço de pau atravessado estavam pendurados as adormecidas linguiças e na prateleira uns queijos da colônia. Então, percebeu que sua vida era em volta de bêbados e desocupados numa espelunca de bolicho ou nas bibocas com prostitutas. A sina de Tonhãozinho era beber cachaça em rodadas de carpetas. E apartando brigas de arruaceiros e chutando bundas de bêbados nas madrugadas.
Tonhãozinho examinou o baralho. Sentou em uma das cadeiras e começou a brincar com as cartas. Embaralhando, fazendo as cartas correrem de uma mão para a outra.
– Um bando de babacas esses merdas. Levaram duas horas para descobrir cinco ases nesse baralho – falou em voz alta, solitário na penumbra do recinto dos jogos.
Tonhãozinho recolocou o ás que sobrara no baralho original guardado no bolso de sua bombacha e colocou no armário. As demais cartas ficaram esparramadas sobre a mesa.
Emborcou mais um liso de cachaça e se atirou por cima de uns sacos de feijão.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O voo do maragato



Athos Ronaldo Miralha da Cunha

Agripino Saraiva, peão de estância aposentado e maragato flor de guasca, acalentava o sonho de viajar de avião. Nem que fosse uma vez, não queria morrer sem embarcar numa “geringonça daquelas” – como se referia à aeronave. Não tinha medo, pois quem montou em baguais e peleou no ferro branco não poderia ter medo das alturas.
Como todo índio grosso, moldado a facão nas lides do campo, não entendia dessas tecnologias de compras pela internet. Pensava que era só chegar ao aeroporto e comprar uma passagem, como fazia quando queria visitar umas primas em São Borja. Ia até a rodoviária e no guichê adquiria o bilhete. Mas avião era diferente, tinha que ser pela internet.
A solução foi recorrer ao Agripininho – o filho, embora com 28 aninhos, era chamado de Agripininho – que conhecia bem essas modernidades e vivia mexendo num aparelhinho preto cheio de letrinhas. Agripininho levou um susto quando o pai falou que queria viajar para o Rio de Janeiro. Depois dos argumentos que ele não conhecia ninguém na Cidade Maravilhosa e a violência campeava frouxa, bala perdida e sequestros, o velho Agripino mudou de ideia. Iria a Brasília. Novamente o filho argumentou que ele não tinha amigos e nem parentes em Brasília. Então, o Agripino tirou a carta da manga.
– Tenho sim, a Dilma. Vou visitar da presidente.
– Tá delirando, velho. Desde quando tu conhece a Dilma?
– Ora, lutamos juntos contra os milico. Tá feito vou ver a Dilma. Pode comprar.
Outro obstáculo para a compra da passagem foi no momento de colocar o número do cartão de crédito para finalizar a compra.
– Que cartão?
Situação resolvida com o número do cartão do genro.
Agripino vestiu a melhor bombacha e se apresentou totalmente pilchado na estação rodoviária. A guaiaca forrada – era um cara prevenido –, uma mala de garupa, chapéu, bota e espora. Claro, estreando um lenço vermelho que enchia o peito. Não adiantou o Agripininho indagar sobre as esporas, que ele não iria passar no detector de metais. A resposta foi taxativa dizendo que não sabia andar de botas sem as esporas.
– Eu não tiro as esporas nem para dormir...
Estava cheio de recomendações. Quando o ônibus chegar em Porto Alegre, não deveria descer, pois o final da linha era no aeroporto. Chegando lá deveria procurar a moça da Azul para fazer o check in para embarque.
– Pra que cheque se paguei em dinheiro pro Arnaldo – o genro –, não foi Arnaldo?
– Isso não vai dar certo... seja o que Deus quiser – comentou o genro.
– Pai, não esqueça, chegando no aeroporto procure a moça da Azul. Ela vai ajudar o senhor. Ah! Leve esse celular, se precisar falar comigo, abra a tampinha e aperte o número dois, entendeu?
– Claro, aperto o número dois.

A entrada de Agripino no aeroporto Salgado Filho foi triunfal. Um autêntico gaúcho devidamente vestido com a indumentária tradicional foi motivo de atenção. Foram várias fotos, selfies solicitadas por pessoas das mais diversas localidades. Estranhou aquela vareta com uma máquina fotográfica na ponta. Achou meio afrescalhada – coisa de cola-fina –, mas não quis passar por grosso da fronteira e foi curtindo seu momento de celebridade, bombeando, disfarçadamente, a tal moça da Azul. Batia esporas pelo aeroporto.
Depois de algumas idas e vindas conversando com tudo que era moça de azul pelo saguão do aeroporto, uma alma caridosa tentou ajudar nosso “marinheiro de primeira viagem”.
– Deixa eu ver o seu voucher.
– Vou, tchê. Para Brasília! – falou de pronto.
– Aquele papelzinho... o bilhete impresso.
–Ah! – buscou o papel no bolso da guaiaca.
Agripino descobriu naquele momento que seu voo era da Azul e que deveria se deslocar para o outro terminal do aeroporto. A contragosto, por conta da palavra terminal, aceitou a indicação do vigilante, que o acompanhou até a parada do ônibus que conduz os passageiros ao terminal da Azul. Agripino chegou batendo esporas diante do guichê da Azul para fazer o check in.
– Bagagem de mão? – pergunta a atendente.
– Só a mala-de-garupa, guria.
Polêmica no embarque: as esporas de prata.
Os policiais ficaram divididos em deixar embarcar com as esporas – espora poderia ser usada como arma? – mas diante da indumentária e autenticidade do gaúcho e da relíquia de prata concordaram, mas teria que levá-las na mala-de-garupa. Agripino fechou o cenho e coçou o bigode. E o policial indicou que colocasse tudo que tivesse de metal na bandeja. Agripino colocou a guaiaca, chapéu, esporas, um relógio – ômega ferradura – falou em alto e bom som. E um par de alianças, pois era um viúvo saudoso da esposa.
Ao cruzar a porta detectora de metais, buzinou o alarme. Agripino tirou um colarzinho com a cruz missioneira e uma pulseirinha. Novamente a porta acusou a presença de metais.
– Tem certeza que o senhor não tem nada mais de metal?
– Ah, sim – e puxou a faca da bota, uma solingen com cabo de prata. – Meu bisavô degolou muito chimango com ela em 93.
Após o breve momento de pânico por conta de uma faca o policial tenta manter a calma.
– Senhor...
– Agripino Saraiva, seu criado.
– Seu Agripino, o senhor não poderá embarcar com essa faca. É proibido qualquer tipo de objeto que perfura e corta a bordo da aeronave. O senhor está entendendo? Para embarcar terá que abandonar a sua faca naquele recipiente.
Quando Agripino tomou ciência que perderia a faca, que não a teria mais de volta, foi taxativo.
– Não senhor, não vou deixar a faca de meu bisavô em lugar nenhum. Essa joia que degolou chimangos em 93. Mas de jeito nenhum. Bem capaz!
Os policiais foram irredutíveis eram as normas a serem seguidas, não adiantou o missioneiro argumentar que estava viajando para se encontrar com a presidente Dilma, que haviam lutados juntos nos tempos dos milicos no poder. Com a faca, não embarcava. Também falou que era amigo de infância do governador. Foram parceiros de pescarias lá nas barrancas do rio Uruguai em São Borja. A resposta era sempre a mesma: com a faca, não embarcava.
Agripino estava perdendo a paciência.
– Mas que cambada de chimangos – murmurou para si e chairou a faca no próprio braço. Hesitou uns momentos e guardou a solingen na bota.
Suas expectativas foram desmoronando por conta da faca de prata do bisavô, o degolador da campanha de 93. Saiu esbravejando pelo saguão do aeroporto e entrou num táxi.
– Toca para a casa do governador...
– O palácio Farroupilha?
– Onde o governador mora?
Não abriu a boca durante toda a corrida. Pagou o taxista com moedas de um real e postou-se em frente ao palácio. Estava em dúvida, pois o guri era um simples amigo lá das missões e agora estava ostentando num palácio. Mas entrou, batendo esporas, porta adentro. Em segundos foi interpelado por dois seguranças. Novamente alguns empurrões de parte a parte e o Agripino se acalmou.
– Quero falar com o governador.
– O governador só recebe com hora marcada.
– O chimanguinho – em tom irônico –, o senhor não está entendendo, eu quero falar com o governador.
– O senhor que não está entendendo, o governador só recebe pessoas que estão na agenda.
– Diz para o teu patrãozinho que Agripino Saraiva quer falar com ele.
– O governador só recebe pessoas que estão na agenda.
– Meu caro, nós fomos amigos de infância lá em São Borja. Nós fomos amigos, muito mais que amigos, quase irmão, eu, o governador e o irmão dele, o Adelminho. Nós pescamos no rio Uruguai.
– Gauchão, que eu saiba o governador não é de São Borja, é de Caxias do Sul e não tem um irmão chamado Adelminho.
– O ignorante – Agripino estava possesso. – Todo o Brasil sabe que o governador Tarso nasceu em São Borja... taipa.
– Só tem um detalhe, o sabichão, o nome do governador é Sartori. Tarso é ex-governador. Palhaço!
– Bah!
Com alguns safanões os seguranças colocaram o missioneiro porta afora do palácio.
– Vá procurar a tua turma!
Agripino sentou-se em um banco da praça em frente ao palácio e discou o número dois no celular. Seguindo orientações de Agripininho se precisasse falar com ele ou precisasse de ajuda.
– Alô, Agripininho? Estou aqui em frente a casa do governador, pode vir aqui me buscar?
– !?.
Agripino pegou umas laranjas da mala-de-garupa descascou com a faca de prata do bisavô degolador de chimangos e ficou saboreando a doçura da vida em frente ao palácio Farroupilha.