sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Como vender a alma ao diabo



Athos Ronaldo Miralha da Cunha

Eu estava pensando em começar a crônica com a palavra Dilma. Na atual conjuntura, Dilma em início de texto chama atenção e atrai o leitor, pois este deseja ler opiniões sobre o governo, seu desempenho e suas articulações políticas. Mas, para falar em transações com o diabo, colocar Dilma no contexto não seria uma boa introdução e, digamos, um bom negócio.
Por que alguém venderia a alma ao diabo?
Quem deseja ardentemente algo que foge ao seu alcance ou está muito distante, além de suas reais possibilidades, a solução derradeira é negociar com o demônio. É mais fácil. Um atalho para o sucesso.
O indivíduo não tem êxito nos negócios, está arrasado com a vida amorosa e perde muita grana nos jogos. O cara está na rua da amargura. Qual a salvação? Vender a alma ao diabo. São infinitas as situações, mas são basicamente dinheiro fácil e luxúria de luxo.
Na maioria das vezes é um péssimo negócio, aliás, ninguém voltou, imagino eu, para um feedback dessa transação. Os juros desse negócio são escorchantes, praticamente o juro de um cartão de crédito. A conta vem e o belzebu não negocia prazos.
Negociar com o diabo é para poucos. Muitas vezes o contrato é assinado com sangue. E tem aqueles casos de “Índio que não se garante / vendo sangue se apavora / e se manda campo fora / levando tudo por diante. [JCB].
É difícil de entender e aceitar as razões de um negócio desse tipo. Mas como explicar mais didaticamente? Se fosse possível desenhar, eu desenharia. Eu não venderia, nem sob tortura.
Então, achei uma solução plausível para explicar e entender um acordo com o diabo.
Dilma! [bingo].
Como eu imaginei iniciar, termino a crônica comentando sobre o governo Dilma.
Porque vender a alma ao diabo e fazer um acordo com o PMDB é quase a mesma coisa. Se não for pior. Pelo menos com o diabo a gente sabe com quem está tratando, já no PMDB tem alguns que posam de santinhos.
Caso precise desenhar eu convoco os amigos cartunistas do Face.

HERANÇA



Santa Maria sempre foi identificada com o cooperativismo pela atuação da Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea, que foi marcante para toda a categoria ferroviária. O Coração do Rio Grande continua, ainda hoje, muito identificado com o cooperativismo: a Feira da Economia Solidária e a Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria – Cesma –, são exemplos bem-sucedidos de cooperação.
E a criação literária pode ser cooperada? Podemos afirmar que sim. Os escritores de Santa Maria já produziram dois romances – Os dez mandamentos [2009] e Arquimedes [2010] – e quatro livros de contos – A frase do doutor Raimundo [2010]; Milongueiro [2011]; O colecionador de cuias [2012] e Bastardo [2013] – todos pela Movimento e com a criação coletiva dos textos. O cooperativismo literário.
Dito isso, à luz de todos esses projetos, podemos concluir que é possível a criação conjunta de textos. Uma estória pode ser contada por vários autores num mesmo volume. E esse foi o nosso grande desafio: manter um padrão estético e literário dos textos, embora escritos de uma maneira diferente. Não há abusos e nem arroubos nessa criação; fizemos apenas o feijão com arroz da literatura, mas tentamos fazer o nosso melhor. E saímos satisfeitos com o resultado. Um exemplo que nos envaidece: A frase do doutor Raimundo foi indicado ao Prêmio Açorianos de Literatura.
Para seguir nessa trajetória cooperativista, estamos apresentando mais um livro de criação coletiva e, novamente, um livro de contos: Herança. São contos coletivos rio-grandenses, pois todos os contos estão ambientados no estado e em todos eles há um “personagem” en passant. Não é personagem central, não está no enredo, mas é representativo dos gaúchos e está contemplado em todos os contos. É uma situação, uma representação que, em dado momento, ilustra a ação narrativa. A capa antecipa num pequeno detalhe esse “personagem” periférico. É um desafio a mais para o leitor.
No final, também, contemplamos um quadro da evolução da criação dos capítulos de cada conto e o heptálogo do conto coletivo. Uma breve orientação de como fazemos para elaborar um texto curto de criação coletiva. Esperamos que seja útil para novas empreitadas literárias por esse Rio Grande afora.
Corra e reivindique uma parte dessa herança. Mas se a herança não for do agrado, compre ingresso para um jogo no Beira-Rio. Boa leitura.

Athos Ronaldo Miralha da Cunha

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Bordô [*] - Conto Premiado




Os hábitos de Valdemar eram simples, como qualquer trabalhador comum desse país. Poucos momentos de lazer e muitas horas dependendo dos precários transportes públicos. Uma vida recatada e de clausura: em casa, nos ônibus, nos trens e no trabalho. Essa era a rotina de Valdemar.
E para quem trabalha horas a fio a melhor parte do dia é o fim de expediente e o melhor dia da semana a sexta-feira. Assim, como pessoas dignas e honestas, todo o trabalhador tem o direito de celebrar a vida e os momentos especiais. E essas ocasiões requerem uma bebida especial, um tinto, não importando se o vinho tenha procedência da França, Mendoza ou da Quarta Colônia. Não importa se o tinto está no Bourbon Shopping ou no boteco da esquina. Não importa se vem numa garrafa personalizada com produção de origem ou num garrafão de cinco litros. O importante é que uma data especial seja celebrada com vinho.
O esforço é recompensado com uma pequena extravagância. E foi com essa ideia que Valdemar encerrou o expediente daquele dia. Lavou o rosto e puxou três folhas de papel-toalha para secá-lo. Em frente ao espelho ajeitou algumas pontas de sua melena prateada. Valdemar era o supervisor dos faxineiros e vigilantes de uma agência bancária. Um funcionário responsável e prestativo. Final de turno, mais uma jornada de trabalho que findava. Estava ansioso, tinha que tomar logo o rumo da casa, mas antes iria comprar um presente para Joaquina e uma garrafa de vinho no mercadinho do Zé Brasinha. O dia que findava era justamente o dia de suas bodas, aquele 22 de julho era a data de seu trigésimo aniversário de casamento. Bodas de pérolas.
Três filhos crescidos, um chalezinho de duas águas quitado e um carrinho para passeios nos finais de semana. A grana era pouca, mas não podia se queixar, tinha uma vida razoavelmente tranquila. Modesta, mas tranquila, sem os percalços das dívidas por que eram acometidos alguns colegas de serviço. Valdemar era controlado nas suas parcas finanças pessoais. Alguns colegas o chamavam de mão-de-vaca, mas ele era uma pessoa realista e centrada. Nos domingos Valdemar e Joaquina gostavam de passear no campus da Universidade. Lá, sentiam-se realizados. Fora na universidade que os três filhos se formaram. Com muito esforço os filhos cursaram uma graduação e um deles o mais novo, estava cursando pós em Zootecnia. Teria um filho doutor.
– Boa tarde, Zé Brasinha! – foi a saudação de Valdemar ao bodegueiro.
– O que vamos levar hoje, seu Valdemar?
– Meu amigo, hoje, preciso de um vinho. Vou comemorar trinta anos de casado. Quero um vinho especial para essa noite. A Joaquina vai fazer uma macarronada. E o estagiário lá do banco disse que massa combina com vinho tinto.
Zé Brasinha acompanhou Valdemar até a estante dos vinhos. Sugeriu um vinho de garrafão oriundo de Caxias do Sul. Também mostrou outro de Bento Goncalves. Mas Valdemar não iria encher a cara de vinho. Cinco litros de vinho era demais. Os filhos iriam tomar cerveja, o vinho era para ele e a mulher.
– Este aqui, Valdemar, o vinho para essa noite especial – e alcançou a garrafa.
Um Quinta do Morgado da serra gaúcha. Vinho tinto de mesa bordô meio seco. Valdemar pegou a garrafa, manuseou e viu que o preço estava dentro do que pretendia gastar R$ 9,25. E com atenção leu o que estava no rótulo: “vinho elaborado com uvas York Madeira selecionadas e colhidas manualmente. Conhecida no Brasil como Bordô, esta uva tem origem na América do Norte. De aroma frutado, é a base de nova linha de vinhos Fante York madeira”.
– Parece bom, vou levar. Não estou bem lembrado, mas acho que tomamos esse vinho no verão passado lá no litoral. A noite na praia um vinho é tudo de bom, seu Brasinha. Pode embrulhar.

A tragédia não dá tréguas e não escolhe o melhor dia e horário. Vem de inopino e alcança os desavisados como um tufão. O inesperado não pede licença e não dá bom dia e não manda aviso prévio. O destino não foi condescendente com o jantar de bodas de pérolas de Valdemar e traiu seus anseio e felicidade. A noite que pretendia ser uma das mais marcantes de sua vida, comemorar com um simples macarrão e um vinho bordô, suas bodas de 30 anos de casado, foi interrompida pela fatalidade. Distração de Valdemar? Relaxamento após um dia estafante de trabalho? Pode ser, mas o fato é que na movimentada avenida, na hora do rush, alguém não respeitou o sinal. Ninguém viu e ninguém fez nada. Tão violento e tão rápido que pegou a todos desprevenidos, um relincho de pneus no asfalto e um pânico geral no cruzamento da avenida São João. O corpo de um trabalhador estendido no chão de asfalto. Fatal para Valdemar. Na mochila os mantimentos estavam intactos: dois pacotes de massa, dois pacotes de queijo ralado e uma garrafa de vinho, Quinta do Morgado da serra gaúcha, e a nota fiscal da bodega do Zé Brasinha. O burburinho tomou conta das duas avenidas e alguém sugeriu que procurassem o mercadinho que constava na nota fiscal. E foi, justamente, o Zé Brasinha o encarregado de levar a notícia aos familiares.

Joaquina não estudara. Vivia para a família, orgulhava-se de ter os filhos na universidade. Sempre comentava que daria aos filhos o que nunca tivera e resumia numa única palavra: estudo. Valdemar tinha a mesma percepção da esposa e também delineou sua vida no sustento e educação dos três guris. No dia do nascimento a vida já está projetada. O filho do rei já nasce predestinado ao trono. O filho do banqueiro sabe que vai estudar em Harvard. O pobre sabe que tem de superar inúmeras adversidades e a concorrência para o sucesso é desleal. Teria que ter muita persistência e sem descanso. Valdemar trabalhava, inclusive, nos finais de semana fazendo bico em festas e baladas. Mas como vimos o destino é ingrato.
Diante dos olhos fixos de Joaquina a vida era passada em preto e branco. Chuviscos de memória varando as fronteiras do tempo. Lembranças distantes numas imagens difusas do passado.

Quando recebeu a notícia do atropelamento e morte do esposo, Joaquina permaneceu em estado de choque. Não acreditava no que estava acontecendo. Uma noite tão planejada com carinho e dedicação para confraternizar com os filhos e o marido fora abruptamente destruída pela morte de Valdemar. Era a desconstrução de uma história, o desencanto dos sonhos. Num primeiro momento não derramou uma lágrima sequer, tamanho era seu espanto, sentou-se na cabeceira da mesa – parcialmente posta para a janta – e ficou ali, pensativa diante de uns pacotes de massa, queijo ralado e uma garrafa de vinho tinto.
Em estado de torpor Joaquina lembra do primeiro aniversário de casamento, as bodas de papel. Ela estava grávida do primeiro filho e Valdemar chegou em casa, de tardezinha após o serviço, com um buquê de flores e uma garrafa de vinho. Não lembrava qual era o vinho, mas tinha certeza, era tinto. Repassando a vida até então concluiu que fora feliz. Simples, com muito sacrifício, mas feliz. Não havia muito que reclamar. Um marido dedicado e três filhos do bem – como costumava dizer –, criados com carinho. Joaquina não era muito exigente, gostava de fazer e sonhar com algo mais. Certa feita, numa colônia de férias numa praia, Joaquina, Valdemar e os filhos sonharam em morar e trabalhar na praia. Teriam a disposição o azul do mar o ano todo. Quem sabe abriria um bar para servir petiscos aos turistas, um salão de beleza ou uma confeitaria. Ramos de negócio que sempre eram lucrativos no litoral. E concluíram em conjunto que a mudança para a praia seria depois da aposentadoria de Valdemar e os filhos encaminhados. Então, a partir daquelas férias de verão Joaquina passou a sonhar com o dia que se mudaria para o litoral. Todos os anos subsequentes retornaram a mesma praia para alimentar os mesmos sonhos. Na última vez estiveram, apenas, os dois. Os filhos estavam estudando ou se preparando para concursos e optaram por ficar em casa. Joaquina e Valdemar prolongaram o período e desfrutaram uns dias a mais na praia. Decidiram: com os filhos crescidos e a aposentadoria logo nos meses seguintes, mudariam para o litoral no fim do ano. A próxima temporada de verão, eles estariam domiciliados na praia.
As recordações estancaram. O tempo é muito curto para prolongar reminiscências e a realidade é muito cruel para os sonhadores, Joaquina volta à realidade e vê em sua frente os filhos ao redor da mesa. Não havia palavras a dizer, apenas, colocar uma blusa preta e velar o marido. Mas Joaquina não se entregaria com facilidade diante da cruel existência. Levantou-se e começou a preparar a janta. Colocou a massa na panela. Cortou tomates e alface e deixou a mesa pronta para a janta.
Abriu o vinho e serviu um copo para cada um dos filhos e saborearam a massa comemorativa aos trinta anos de casada. As bodas de pérolas. Na sala de jantar, apenas, o ruído das facas e dos garfos nos pratos de porcelana. Joaquina encerrou a refeição, tomou o último gole de vinho e levantou-se. Retirou-se para o quarto e voltou com uma echarpe preta sobre os ombros e uma bolsa a tiracolo.
– Vamos que hoje a noite vai ser longa. Pois não é todo dia que a gente completa bodas de pérolas.


[*] Conto classificado no 3º Concurso Nacional de Contos de Santo Ângelo-RS

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Tamo junto, mano!



Athos Ronaldo Miralha da Cunha

Uma caminhada pela orla de Copacabana é tudo de bom num final de tarde no Rio. O sol e as cariocas são fascinantes. Mas naquela tarde quente resolvi caminhar até a estátua de Tom Jobim e o percurso ficou mais longo e na volta anoitecia na cidade maravilhosa. O movimento continuava intenso de passantes e turistas, mas um pouco antes de chegar ao hotel recebo o que todo carioca já está acostumado e todo turista teme.
– Isso é um assalto, mermão! Passa a grana.
Quatro musculosos e brabos cariocas e uma beldade de longos cabelos me interpelam e me arrastam para a penumbra de uma árvore próxima a estátua de Ibraim Sued, perto do Copacabana Palace.  
Não me perguntem como, mas eu consegui uma tornozeleira eletrônica antes de viajar em férias para o Rio. Claro, nas minhas caminhadas pelas praias de Copacabana e Ipanema sempre tomava o cuidado de colocá-la camuflada pela meia soquete. Pedi calma para os simpáticos recepcionistas cariocas e mostrei a tornozeleira aos meus novos amigos.
– Tchê! Tamo junto, mano! – falei triunfal. Não era para ter saído o tchê. Fazer o quê.
– Ô gaúcho, tu é dos nossos?
Também estava com uma guaiaca e nas costas trazia uma faca de prata. Herança do sogro. Quando puxei a faca houve um espanto geral e uma abertura da roda. Os olhos branquearam na faca.
– Calma aí, gaúcho.
Então, expliquei que a faca já tinha feito muito serviço. A guria se interessou o porquê da tornozeleira eletrônica e como eu estava no Rio. Não deveria cumprir pena no Sul? Falei que estava sendo transferido para uma cela especial no Rio – presídio de segurança máxima, cela solitária – e antes de desocupar a minha, me colocaram aquela tornozeleira. Acho que pegou. Eles, apenas, se entreolharam. Então me apresentei.
– Paulinho Torquemada, a seu dispor. O mais cruel do morro do Alemão.
– Sem essa, no morro do Alemão não existe nenhum Paulinho Torquemada – falou com os olhos vidrados na tornozeleira.
– Do morro do Alemão em Porto Alegre – falei, e mais uma vez colou.
A jovem carioca resolveu que queria saber sobre meus crimes.
Latrocínio, estupro – ela também arregalou os olhos – homicídios, três, sendo um deles triplamente qualificado. Eu sempre gostei da expressão triplamente qualificado, o cara fica num nível mais acima dos demais.
Nesse momento eu senti um malestar entre os meus novos amigos. Um deles falou “Bah!” e eu tive que rir.
E para arrematar eu perguntei se eles lembravam quando os gaúchos queimaram o relógio dos 500 anos. Fizeram, apenas, que sim com a cabeça. Pois é, eu era estudante naquela época, foi a minha prova de fogo. Dali para os furtos e assassinatos foi um pulo. Percebi que a jovem já me olhava com uma certa admiração, então resolvi dar um tchauzinho aos meus amigos.
– Vamos marcar um chope amanhã nessa mesma hora. Aqui por essas bandas.
– Pode crê, mano.
Terminei minha caminhada... tranquilamente.