domingo, 30 de setembro de 2012

Segredos do romance policial


Athos Ronaldo Miralha da Cunha

O livro “Segredos do romance policial” de P. D. James é uma excelente leitura para os apreciadores do gênero.
A autora – principal escritora britânica de romances policiais da atualidade – faz uma abordagem acerca dos mais diversos escritores nos mais variados períodos. Suas técnicas e estilo. Também revela os segredos da criação literária e enumera os melhores livros de detetives já escritos.
Algumas revelações são pertinentes sobre os livros da Era Dourada “o criminoso deve ser mencionado na primeira parte da narrativa, mas não deve ser ninguém cujos pensamentos o leitor teve a oportunidade de acompanhar”. Assim vão surgindo os macetes de um bom enredo. Também nos revela que “nenhum chinês deve fazer parte da história” só não sei o porquê. O amigo bobo do detetive – o Watson – deve ser ligeiramente, mas não mais que ligeiramente, menos inteligente que o leitor.
Cabe salientar que romances premiados da Era Dourada do gênero não se encontram mais em catálogos, no entanto os livros de Agatha Christie permanecem nas livrarias e bibliotecas. Aliás, Agatha Christie nunca explicou nem comentou seu misterioso desaparecimento em 1926, na época, um escândalo nacional.
A história de detetive tem seu centro no assassinato de forma mais horrenda e violenta, pois se ocupa de morte, vingança e castigo.
Enfim, os autores modernos precisam ser mais minuciosos nas pesquisas, mas não a ponto de dissecar uma lição de ciência.
Além de nos fornecer uma relação de livros de detetive, uma agradável leitura, como diria um velho e cansado crítico.  

sábado, 29 de setembro de 2012

Os intosquiáveis


Athos Ronaldo Miralha da Cunha

Encerrado mais um processo de campanha salarial e mais uma vez saímos decepcionados com o resultado das nossas lutas e com o desempenho de nossos negociadores.
Essa decepção tem origem, meio e fim. E um script por demais conhecido, um roteiro previsível e imutável. E vem se repetindo, ano após ano, desde a ascensão de Lula à presidência e, por conseguinte, a “conquista” da malfadada mesa única.
Quando recebemos a notícia de que a categoria vai pedir 10% de aumento, o que veio em nossa mente? Um déjá vu, índice rebaixado e desânimo de lutar. Então, nos perguntamos: como é que bancários reunidos em uma conferência, na hora da escolha do percentual aprovam justamente o menor índice? A resposta é simples. Não é uma conferência de bancários, é um encontro de dirigentes sindicais. E, na maioria das vezes, longevos dirigentes sindicais. Arrisco a dizer que alguns têm a carteira assinada pelo Sul Brasileiro. Pessoas que não sabem mais o que é um banco. Desconhecem o serviço bancário. Estão desapegados do contato com a base. E para agravar a situação, esse pessoal é totalmente conivente – e subserviente – com a atual classe dirigente dos bancos públicos brasileiros. Blindaram os oitos anos de Lula e continuam blindando a Dilma. Discussão de perdas salariais... nem pensar.
No entanto, mesmo com o índice rebaixado fomos à luta. Uma greve arrebatadora, em Santa Maria só não fecharam os bancos privados. Mas na primeira contraproposta dos banqueiros, pasmem, os combativos companheiros da Contrafcut – ou seria Sentrafcut – recomendam às assembleias a aceitação da proposta. A indignação foi geral. Alguns colegas cuspiam fogo. Foi nessa ocasião que o companheiro Rejo cunhou a frase “eles são os intosquiáveis”. Chorei de rir da expressão. Uma palavra exemplar para definir uma situação.
Bueno, aí aconteceu o que o pessoal da Sentrafcut não imaginou. A base queria mais. E disse não a proposta dos banqueiros. Inclusive a base de São Paulo, por um descuido dos capas, também recusou a proposta. Não tecerei comentários do que aconteceu na assembleia seguinte em São Paulo porque aquilo me causa urticárias. Enfim, após uma breve semana de lutas, voltamos ao trabalho abichornados, porque merecíamos mais... mais respeito dos nossos líderes.
Está evidente que o sindicalismo brasileiro – e o bancário em particular – precisa ser repensado. A democracia precisa ser exercida em sua plenitude, ou seja, devemos eleger os nossos representantes. Hoje elegemos, apenas, os dirigentes sindicais. Os coordenadores das federações e da confederação são eleitos em colégios eleitorais de forma indireta. Urge essa democratização para que a base reconheça essa representação. Para que os dirigentes deem a cara à tapa em roteiros pelo interior. Qual foi a última vez que um dirigente da Fetrafi-RS veio à Santa Maria? Eu não lembro. Para mim, é ponto essencial essa democratização esse “desencastelamento” das nossas mal-acostumadas direções.
Outro dado a ser discutido e que atrasa as demandas da categoria, são as lutas intertendências. Hoje, a principal pauta do sindicalismo são as eleições de cada sindicato – no Rio Grande do Sul são 37 –, então acaba uma eleição e tem outra e lá se vão os capas buscar seu quinhão em cada sindicato, pois isso também reflete nas liberações e crachás levantados nos encontros. As liberações é outro ponto importante para ser discutido. As liberações são feitas por força, ou seja, conforme o tamanho de sua tendência. E isso acarreta que um sindicato com 140 filiados na base pode ter duas liberações, pois quem libera é a tendência. Como se resolve isso? Liberações por número de sindicalizados. Por exemplo: até 1000 sindicalizados, uma liberação. Acabaríamos com a ditadura das tendências e faríamos a verdadeira discussão na base sindical, uma assembleia para deliberar quem seria o liberado. [Cá entre nós: utopia].
Esse é um texto para reflexão. Sempre é interessante após uma campanha salarial fazermos uma meditação acerca dos acontecimentos. Não pode ser no calor da greve e nem na pasmaceira do mês seguinte, mesmo que nada se modifique, mas se alguém ler – concordando ou discordando – teremos avançado. E podemos um dia melhorar nossa luta sindical. Caso contrário, manteremos os “intosquiáveis” ad aeternum nas nossas direções.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Retouço na sauna


Athos Ronaldo Miralha da Cunha

A festa de confraternização de fim de ano tinha tudo para ser inesquecível. E foi.
Apenas os saunistas fariam parte da comemoração. Sem as digníssimas e, principalmente, sem as indigníssimas – como comentou o organizador –, festa só para o machario. O cardápio: uma desejável e apetitosa ceia de Natal.
Um dos frequentadores doou dez perus e outro, duas caixas de cerveja. Estava feita a festa. Na noite de 18 de dezembro na sociedade 3 de Outubro Tênis, Remo, Bocha e Pingue-pongue, muitos sorrisos e tintins de cálices e copos. A cerveja rodava solta e, perfeitamente gelada, ornamentava os cristais nas mãos dos bebuns.
No salão ao lado, um outro encontro para celebrar o fim de ano dos tradicionalistas. Peões, prendas e patrões de CTGs. A alma campeira também celebrava os festejos de dezembro. Moçoilas faceiras e prendas recatadas. Gaúchos de bombacha e barbicacho. No centro do salão, tinidos de adagas e esporas. Na churrasqueira fumegava a picanha e a costela num incandescente braseiro. Aos cuidados de um exímio assador, peão de uma estância e flor de bagual.
Entretanto, quero ater-me ao recinto festivo dos saunistas, sem o rito tradicional dos Centros de Tradições. O ambiente seria uma simples comemoração com desejos mútuos de felicidades no ano novo, se o Chicão não chegasse acompanhado com quatro “primas”. Justamente quatro indigníssimas – no linguajar do organizador – e belas beldades.
Quatro formosuras de cair o queixo, levantar sobrancelhas e parar o trânsito. De deixar o mais insosso dos mortais com olhos saltitantes e babando uma saliva sádica.
Foi um alvoroço entre os convivas. Olhares gananciosos e sorrisos matreiros.
– Vai ter sorteio! – gritou um gaiato.
– Opa, esta é uma sociedade familiar – comentou alguém menos afoito.
– Iiiiiiiiiiiiiiaaaahhuhuhuhu!! – gritou um saunistas metido a guasca, esfregando as mãos com uma satisfação exacerbada, bombeando uma das gurias.
Uma morena fogosa e três estonteantes loiras embelezavam a mesa do Chicão. Sorridentes, perfumadas e belas. Os olhares traiçoeiros se cruzavam num vaivém desmedido. Chicão era a simpatia em pessoa. Largos sorrisos, gestos lentos e gentilezas vãs. Estava empolgado, garboso e faceiro. O dono do pedaço... e das minas.
O Pedro Espanhol, da Diretoria do Clube 3 de Outubro Tênis, Remo, Bocha e Pingue-pongue, achou um absurdo. 
– Uma sociedade de respeito não pode permitir uma afronta dessas, eu exijo a retirada imediata dessas gurias do recinto – esbravejava na porta do salão. O Espanhol dava pulos de raiva e escabelava os próprios cabelos.
O Saldanha, um aposentado fanfarrão, disse que a sociedade merecia mais consideração e se propôs conduzir as gurias para fora dos domínios do Clube.
– Deixa que eu tomo conta delas – falou sorrindo.
O Garcia, um comerciante de bugigangas, quase mal-educado, afirmou categoricamente que a culpa era do porteiro.
– Ele deveria ter pedido a identificação das moças. O porteiro deixou as minas entrarem. E vamos com calma que eu estou apaixonado pela morena.
– Era só o que faltava... a culpa agora é do porteiro – retrucou o único e solitário “cumpanhero” na festa em defesa do humilde trabalhador.
Nesse instante uma senhora da mais alta estirpe tradicionalista gaúcha trancou a porta do salão de festas.
– Isso é uma pouca vergonha – batendo a porta na cara de um incrédulo saunista.
– Ora, vá se queixar ao padre, ao bispo ou ao papa... – retrucou o incrédulo saunista.
Depois do tumulto da chegada triunfal das amigas, ou primas, ou indigníssimas do Chicão elas foram gentilmente convidadas a se retirarem. O Clube 3 de Outubro Tênis, Remo, Bocha e Pingue-pongue não permitiria a presença das chinas ali no salão de festas.
E saíram fogosas, audaciosas e rebolando diante dos olhares de admiração dos incautos, sonhadores e babando fios de ovos. A noitada de um ansioso dezembro estava desfeita.
– Mais um minuto e vou embora apaixonado – sussurrou desolado o Garcia.
– Isso vai dar rolo e suspensão.
– Mas as primas eram rechonchudas... graciosamente volumosas. Eram monumentos ao prazer. Eram quatro obras-primas dignas de um Picasso. O Pablo, claro.
Bem, a festa continuou sem as gurias e o Chicão.
Os remanescentes beberam cervejas e estouraram champanhas na companhia das estrelas num céu escuro. E cada galanteador foi pra sua casa dormir o sono dos justos.
No outro dia, no cair da tarde, estavam uns festeiros suando na sauna seca. Destilando a cerveja da noite anterior.
Nesse momento o Garcia provoca dizendo que nos bailes do clube 3 de Outubro Tênis, Remo, Bocha e Pingue-pongue qualquer mulher entra, é só pagar. Isso aqui está cheio de percantas e sócios de qualquer espécie – completou.
– Tu ta falando isso pra mim – retorquiu o Saldanha.
– Se te serviu o chapéu, estou – prontamente respondeu Garcia.
De pronto Garcia avançou em direção ao colega de sauna empurrando-o contra a parede. Saldanha devolve com um soco direto no nariz de Garcia. Este, desequilibrado, senta no colo de Papada Papudo.
Papada Papudo é um senhor bonachão e sem maldade. Para ele tudo está bem.
– Opa, que isso aqui ta fervendo. E vamos manter uma distância regulamentar pessoal. O espaço é pequeno e tem muito pelado – Papada Papudo comentou sorrindo.
Novamente os dois valentões levantaram e se atracaram dentro da sala da sauna. Fechou o tempo no ambiente. Ronaldão – jogador da várzea e forte como um touro – se meteu no meio da briga e levou um cruzado no maxilar. Cuspiu meia dúzia de dentes.
– Pessssoal, vamossss parar com isssso. Doissss amigossss brigando! – e saiu com a mão na boca, assobiando quando falava palavras com “s”.
– Eu não aparto briga de homem pelado! – sentenciou um pelado no meio da sala quente.
– Já te pego pilantra – vociferava Garcia lavando o rosto na pia.
– Isso aqui é um estágio para o inferno.
E se atracaram novamente. Novamente o Garcia cai em cima do motor com a sopa de pedras que esquenta a sauna. E sai gritando porta afora com a toalha fumegando na bunda.
– Eu não aparto briga de homem pelado! – insistia um perseverante no interior do recinto da sauna.
– Essa confusão só pode ser coisa do PT ou da Rita – retrucou um trabalhista que odiava o partido do presidente e adorava novelas.
– Bah! A dialética do absurdo... ou seria o absurdo dialético? – simplesmente respondeu o petista solitário.
– E eu vou sair daqui porque não posso ver sangue.
– Mas tchê, tu é médico.
– Ah! É... mas estou aposentado.
– Num bochincho certa feita, fui chegando de curioso – começou a declamar um gauchito do outro lado da sala de descanso.
Enquanto isso Garcia era carregado, todo ensanguentado e com a bunda vermelha, para fora da sauna para ser atendido com os primeiros socorros. E, aparentemente, o clima no ambiente voltou ao normal, ou melhor, continuou quente, afinal os brigões estavam numa sauna.
Garcia ainda estava sendo carregado quando um sujeito estranho ao ambiente da sauna entra no vestiário. Calmamente e em silêncio, dirigiu-se a sauna seca. Usava apenas uma bombacha preta e chinelos de dedos, possuía um bigode de causar inveja ao Guri de Uruguaiana.
Os presentes no recinto se entreolharam. Achando meio esquisito a presença e a indumentária do saunista gaudério. E o bombachudo não se fez de rogado.
– Onde estão as percantas? – pergunta, ajeitando o bigode.

domingo, 9 de setembro de 2012

Sem Sangue - o degolador (*)


Athos Ronaldo Miralha da Cunha

Sem Sangue chimarreava, pensativo, ao pé do braseiro.
Lembrava de que quando gurizote peleou na Revolução Federalista de 93. Era o assistente do coronel maragato Adão Latorre. Naquela campanha foram responsáveis por mais de 300 degolas de pica-paus.
Foi num dia muito quente no lugar que ficou denominado como Potreiro das Almas lá para os lados de Bagé. O guri era conhecido pelos rebeldes por João Faz Tudo. Ele que amarrava os prisioneiros deixando pronto para o Adão Latorre. O guri foi prestativo nas degolas, zombarias e humilhações de pica-paus. Depois daquele dia passou a chamar-se João Sem Sangue e, logo em seguida, apenas, Sem Sangue. Na maioria das vezes tinha olhar parado e gestos lentos. Diante de tamanha selvageria no ato da degola Sem Sangue permanecia indiferente. Calmo e frio como se estivesse pitando um palheiro feito a capricho. Agia com frieza e com a maior naturalidade, inclusive, quando o primo Juan – do lado chimango e mais castelhano da família – implorou pela vida. Sentindo o calor do aço da adaga de Latorre no pescoço fez sua derradeira solicitação.
– João! A gente pescava junto... a gente era parceiro nas barranqueadas... João pelo amor de Deus e de nossas mãezinhas...
Latorre olhou para Sem Sangue como quem diz “e agora guri”, mas Sem Sangue não moveu um músculo da face sequer. E seus olhos fitaram, como último adeus, os olhos de súplica de Juan. Ainda segurando o corpo inerte de Juan, Latorre perguntou.
– Era teu primo Sem Sangue?
– Era – foi a resposta seca e completou. – Eu nunca fui numa pescaria e nunca barranqueei – virou as costas e saiu.
E agora passados todos esses anos, depois de tropeadas e andanças araganas, Sem Sangue lutava nas tropas de Zeca Neto na campanha de 23. Seguia os ideais de Assis Brasil. Mais uma vez um confronto sangrento entre chimangos e maragatos. Continuava ágil e frio o velho Sem Sangue de guerra.
Os gritos do passado eram um turbilhão de vozes aflitas que martelavam sua mente. Então, percebeu diante de seus olhos a imagem do primo Juan pedindo “pelo amor de Deus e as nossas mãezinhas”.
Sem Sangue sorveu mais um mate, tomou um trago de cana e ajeitou as lenhas no braseiro. Amolou a adaga num rebolo e secou num saco de farinha. Saiu do barracão a passos lentos e olhos parados.
– Onde estão os chimangos?



(*) 3º lugar no 2º Concurso de Causo Gauchesco Apparicio Silva Rillo, promovido pela Estância da Poesia Crioula.