quinta-feira, 20 de agosto de 2020

O capitão de Santiago do Boqueirão

 

Athos Ronaldo Miralha da Cunha

 

De uns tempos para cá a palavra capitão tornou-se recorrente no Brasil. Por que será?

Mas eu só fui me dar por conta que, há mais de cinquenta anos, também desejei ser um capitão, há bem poucos dias. E essa lembrança aflorou justamente quando o centenário capitão Tom Moore, do exército do Reino Unido, foi condecorado pela rainha e recebeu o título de Sir Tom Moore. Que honraria!

Galardão recebido por conta das voltas que deu em seu jardim. Lentamente, com um andador, caminhou mais de 2 km e com isso arrecadou mais de dois milhões de libras para serem doados para combater o covid-19.  

Mas a patente de capitão – Patente? Eu sou meio invocado com esta palavra – é muito cara aos brasileiros e lembro de alguns capitães que andaram por aí fazendo história. E causando alvoroço.

Luís Carlos Prestes era capitão e capitaneou uma coluna Brasil afora ou adentro, sei lá. Tornou-se o Cavaleiro da esperança. Odiado por uns e amado por outros.

Temos um outro capitão que também ficou famoso nas peleias. Capitão Lamarca: ele desertou e resolveu enfrentar seus excompanheiros de caserna para combater a ditadura e virou o capitão vermelho. Mesma coisa, odiado por uns e amado por outros.

São muitos os capitães para lembrarmos. Temos uma sequência de cinco capitães que são reconhecidamente amados porque foram heróis. E levantaram taças.

Um deles, talvez o mais lembrado, seria o capitão do Tri. O mais simbólico dos capitães que já produzimos aqui no Brasil. Acho que justamente porque os outros dois capitães e uma turma de invocados estavam envolvidos na luta pelo fim da ditadura enquanto ele levantava a taça Jules Rimet.

Mas como eu disse lá no começo, na minha tenra idade numa perdida Vila Nova em Santiago do Boqueirão à beira de uma estrada de ferro, eu sonhava ser capitão.

Eu lembro que tinha um carrinho – Simca Chambord branco –, e para ser dono de um Simca eu só poderia ser capitão do Exército, lógico. Mas a minha patente – patente? – de capitão durou pouco. Algum tempo depois eu ganhei um Jeep, aí rebaixei meu horizonte utópico e desejei ser, apenas, um sargento. E na vida adulta não fui nenhuma coisa e nem outra.

O fato que o velho capitão Tom me trouxe doces lembranças da infância.

E essa é a reflexão: as voltas que o mundo dá e as voltas que deu o capitão do Reino Unido nos causam estranheza e admiração. Afinal de contas, cada povo tem o capitão que merece.

Mas o capitão do Tetra, para mim, é o mais emblemático de todos os capitães canarinhos. Dá um desconto aí, eu sou colorado.

Estação Santa Maria no dia dos pais

Athos Ronaldo Miralha da Cunha

A minha infância foi à beira de uma estrada de ferro lá em Santiago do Boqueirão. Brinquei no depósito da viação: fui maquinista, guarda-freio e chefe do depósito. Montava e desmontava uma Maria-Fumaça.

Eu sou filho e neto de ferroviários. E nesse dia dos pais nada mais justo que uma saudação à memória do velho seja através de uma crônica versando sobre ferroviários, ferrovias e a estação.

É claro que ter pai ferroviário é motivo de exaltação. Ter um pai é motivo de orgulho. Porque sobram pais ausentes num país em que se normaliza a falcatrua e, diariamente, tem um bobalhão esfregando uma carteira com o brasão da pátria em alguém supostamente inferior.  Sinto-me honrado ter um pai que foi trabalhador – no sentido mais nobre da palavra – e foi uma pessoa dedicada e honesta que constituiu família e criou quatro filhos. E como ele mesmo dizia “nunca pedi penico pra ninguém”. Foi uma pessoa que não teve oportunidade de avançar nos estudos, mas era um sábio. Costumava dizer que “diploma não encurta as orelhas”. E nesse Brasil atual percebemos que o velho estava correto.

Então, quando sou acometido por sentimentos de saudade e nostalgia recorro às imagens de minha infância e sinto presente o apito da Maria-Fumaça. E quando minhas saudades são recentes e minhas nostalgias são de poucas distâncias, pego minha máquina fotográfica e vou para a estação Santa Maria. Lá pratico o que batizei de “terapia dos trilhos” não ajuda bosta nenhuma, mas revigora – embora aos frangalhos e pedaços de ruínas – meu passado de filho de ferroviário.

A estação Santa Maria é o local que mais fotografei aqui na cidade. E o sentimento de tristeza dispara quando comparamos as fotografias com o passar dos anos.

Aí lembro de Heráclito e o rio. E devo dizer que não visitamos duas vezes a mesma estação Santa Maria. Nós não seremos mais os mesmos, mas muito mais evidente é que a estação também não será mais a mesma. A velha estação definha... a cada visita um adeus. A cada visita temos menos estação.

A estação Santa Maria pede socorro!

Então, eu percebo que muitos pais ferroviários já não estão mais conosco e nós não estamos percebendo este chamamento. Um ferroviário da plataforma da estação, do vagão, da máquina ou do chão do depósito não aguentaria tamanho descaso com o seu passado.

Resta para os sobreviventes um banco na praça Saldanha Marinho. E lá folheia o seu álbum da vida.

Aos pais, um fraterno abraço.