segunda-feira, 25 de maio de 2009

O colecionador de cuias


1º lugar ALPAS XXI (III concurso letras premiadas contos)

Parte I – Athos Ronaldo Miralha da Cunha

A chaleira preta chiou na chapa. A água estava pronta para o mate. Torquato Filho pegou uma das tantas cuias do armário, um pacote de erva buena lá da fronteira, uma envelhecida bomba de alpaca e começou o preparo do chimarrão. Uma rotina que jamais abrira mão. Matear no arrebol de todos os dias diante do armário com sua coleção de cuias. No inverno, aquecido pelo fogão à lenha, e no verão, refrescado por uma leve brisa do sul.
A bomba e, principalmente, a cuia eram heranças inestimáveis do velho Torquato.
Saboreando o amargo naquela manhã de primavera Torquato sentia, com olhos de saudade e um coração palpitante de recordações, os anos que ficaram para trás, suas lidas de filho de peão, peão e, posteriormente, bolicheiro de beira de estrada.
Passavam pela sua mente, diante da cuia e da chaleira na humilde cozinha de sua residência, lembranças de um tempo remoto. Rememorações dos tempos de guri. Então, pareceu tão presente e ao alcance de sua mão o primeiro mate que o velho Torquato oferecia ao filho. Nunca esquecera aquele gesto e o sorriso do velho. Era o reconhecimento do pai, ao piá que se tornara um rapazote.
O primeiro chimarrão entre pai e filho tinha um sabor de cumplicidade. Não havia necessidade de prosa, bastava que um servisse o mate do outro. E, assim, pai e filho tornaram-se companheiros. Foi numa madrugada de um rigoroso e longínquo inverno, tão distante que não saberia mais precisar, só tinha uma certeza, fazia muito tempo. E muito frio.
Depois daquele primeiro mate na parceria do velho, a cuia sempre esteve bem guardada e cuidada no armário da cozinha. A primeira cuia da coleção de Torquato. A cuia que foi parceira de muitos anos com o Velho nas auroras de tantos invernos que, hoje, não existem mais.
E, com essa mesma cuia o bolicheiro sorveu os primeiros mates dessa primavera pampeana. Solito, na cozinha, se corroia em reminiscências.
Logo, Joana estaria em pé lidando com os afazeres domésticos e preparando o almoço para Torquato e os filhos. E, certamente, uma panelada de ambrosia para o dia das crianças.
Com os olhos postos na coxilha verde da cuia, Torquato sorveu o derradeiro mate no alvorecer de seu rancho. Colocou mais lenha no fogão, fechou as portas do armário com suas incontáveis cuias e se foi arrastando as alpargatas rumo à peça da frente de sua casa, onde tinha o seu modesto comércio.
Torquato abre as portas do bolicho e respira o ar da manhã.
Nos galhos da corticeira alguns cardeais, em algazarra, davam um toque de alegria ao crepúsculo daquele outubro florido.

Parte II – Tânia Lopes

Retomou as lembranças de outras cuias em sua vida., como a primeira visita que fizera ao chefe da subestação de João Arregui, quando os trens ainda passavam por lá, carregados de gente. Quer dizer, a bem da verdade, os dois vagões primeiros, de primeira classe, um outro, o vagão refeitório, depois o vagão de segunda, seguia o de carga, e o último de bosta, que ia para ser beneficiada e virar adubo numa estação mais adiante.
Na verdade dissera, ao se apresentar para o homem de quepe e uniforme da VFRGS, que passara para oferecer à família seus préstimos de bolicheiro, mas as segundas intenções era conhecer as filhas do homem...
Diziam que eram umas moças mui lindas e guapas. Pois foi justo Joana que lhe oferecera um mate novo, cheiroso, com uma pequena flor de laranjeira no topete da erva.
– Desculpa, moço! – dissera o homem arreliado – Já falei que não há “percisão” de enfeitar mate... Mas essas minhas filhas são inventadeiras!!
– Tá bonito o mate, seu, não se apoquente! – falou amistoso – A contragosto viu que seu rosto esquentara e esperara que não se notasse que ficara rubro de vergonha ou algo más, que brotara ali mesmo, se confundindo com o calor do mate baixando pelas entranhas... Num relance viu que a moça se afastava atrapalhada, segurando o riso, corada também.
Fazia tanto tempo e ainda lhe dava gosto lembrar!...
Lembrou da velha Talita, sua tia que o criara, já que a mãe morrera de parto. Uma vez que fora da cidade que a tia lhe trouxera uma cuia enfeitada com prata. Coisa fina. Estava ali, lado a lado com outra cuia velha que fora do pai, que rachara de tanto uso. Engraçado, só agora, homem feito se dera conta que bem que os dois poderiam ter alguma coisa a mais do que o parentesco de cunhados!
Perdido nas suas lembranças foi abrindo as tulhas de feijão, milho, arroz e erva. O odor conhecido lhe fazia abrir as narinas para melhor apreciar. Abriu a queijeira de tela, virou um por um os queijos, num costume antigo que aprendera com sua tia. – Precisava comprar mais alguns, pois nas carreiras de domingo vendia talhadas de queijo com marmelada, salame ou mortadela, conforme o gosto dos fregueses. – pensou.
Relanceou de novo o olhar para a carreteira. Uma leve polvadeira anunciava que vinha alguém.
Era meio perigoso morar quase na beira da estrada, sabia disso. Havia passantes do bem e do mal. Vez por outra algum mal-encarado apeava, largava o cavalo pra pastar ou, beber água na tina que existia para esse fim. Um banco tosco debaixo do cinamomo que mais parecia uma sombrinha, convidava os viajantes para uma parada naquele refrigério natural, tal era o compacto das folhas da árvore.
Aos poucos viu o vulto que ora aparecia, ora baixava, conforme a sinuosidade do terreno.

Parte III – Antônio Cândido de Azambuja Ribeiro

Firmou a vista, tentando identificar o cavaleiro, mas este ainda vinha longe, o que impossibilitava a pronta identificação. Por enquanto, era só um vulto e um rastro fino de poeira. Voltou ao interior da venda e novamente se ocupou de seus afazeres e lembranças. Destas, aflorou-lhe à mente, mais limpa que outras tantas que ordinariamente desfilavam nos seus amanheceres, a passagem, pelo bolicho, de um castelhano melenudo, corrido da polícia. Homem de feições rudes, barba negra, gestos largos e fala pausada. Por coincidência, Ramón, o dito fugitivo, dera com os costados no bolicho num morno amanhecer de primavera. Viera do outro lado, pelo Passo, para homiziar-se em terras brasileiras, na esperança de se empregar como peão numa das estâncias de “acá”. No bolicho, relembra Torquato, o castelhano pediu uma gasosa, um pão e duas latas de sardinha, que devorou como se não comesse há dias. Tendo enchido o pandulho, pitou, com tragadas vagarosas e profundas, um palheiro feito de um fumo especial, um amarelinho de sabor suave, de cujo rolo pedira um naco ao bolicheiro. Enquanto fumava, da porta do bolicho, mirava o horizonte aberto, como se mirasse a pátria saudosa e distante ou o próprio e incerto futuro.
Depois, sem que fosse provocado, contou a Torquato a sua história. Ele, seus pais e uma irmã eram agregados em uma estância correntina. Um dia, lavando roupa no açude, “su hermanita”, jovem na flor dos 15 anos, foi estuprada pelo filho do estancieiro. Não satisfeito, o estuprador ameaçou de morte a pequena Dalila e exigiu que, em dias por ele determinados, ela estivesse à sua espera num capão de mato, próximo da sede da estância. Dalila entrou em profunda depressão e, só ao custo de muita pressão familiar, acabou revelando à mãe o que acontecera. E Ramón parece se perder nas lembranças:
“Madrecita dije a mi padre lo que sucedió con Dalila, e el viejo – carajo!, hombre que honraba sus cojones –, entregó su alma a El Malo e, con sus fierros de capar toros, sacó fuera las pelotitas de aquél hijo de uma gran puta. E, con el cuero, ha hecho una capa para un chico mate, uma chica cuia como ustedes dicen acá, en la cuál mi hermana mateaba su yerba dulce. Iracundo con lo que aconteció con su hijo, el estanciero, hombre rudo e de malos princípios, sin preguntar a mi Tata suyas razones, con un bandalaje de flojos, mató los viejos, sin los haber dado oportunidad de explicación. Dalila, que todo presenció, desesperada, com miedo de que la atacasen, se metió en uno hondo bañadero que había acerca del rancho e se murió ahogada. Solo resté yo, que, en la ocasión, estaba fuera, a servicio del propio estanciero. Después, pusieron fuego em nuestra casa. De todo, restó la cuia, con la cuál Dalila mateaba cuando ellos fueron atacados. Ella, la cuia, yo la encontré por acaso cuando volví de viaje. Después, vecinos contaron lo que se había sucedido e traté de rajar del territorio, pues el estanciero hablara que también me mataría, en mi retorno (para que non restase ninguna posibilidad de descendencia de nuestra raza). Pero, antes de huir, maté el desalmado e, dende entonces, matrero, tengo vagado mundo afuera, escondiéndome de la gendarmería. Es esta, en dos palabras, mi triste historia, paisano. Pero, mira, bolichero, yo no soy malevo como dicen los gendarmes e para probarlo, dejaré con usted, para que de mi te recuerdes siempre, com mis agradecimientos por tu generosidad, la cuia, encapada com el cuero de los cojones del hijo de una puta que empezó esta disgracia.”
Dizendo isso, Ramón, sem conseguir disfarçar a emoção que sentia, foi ao cavalo e, de uma surrada mala de garupa, tirou a cuia, entregando-a a Torquato. É a mais estranha das peças da sua coleção. Nela, o bolicheiro jamais cevou um mate. Um pouco por asco, um pouco por respeito à memória de Ramón (morto, dois dias depois de sua passagem pelo bolicho, por um conterrâneo seu, surgido ninguém sabe de onde, em mal explicado entrevero, num jogo de tava).

Parte IV – Orlando Fonseca

Torquato sentiu uma leve tontura ao pôr-se de pé. O cavaleiro, agora, tinha semblante e não se tratava de nenhum desconhecido, muito menos maleva. Reconheceu o velho pala, o chapéu de aba levantada e a barba grisalha. Era o próprio velho Torquato. Seria simplesmente uma alegria, não tivesse seu pai falecido há dez anos. O vulto desceu do cavalo, à sua frente, dirigiu-se para o interior da casa, e voltou de lá com a cuia que o Ramón lhe havia dado. Com o mesmo e antigo rosto duro, de muitas lides, de muitas invernias, a tez morena tostada pelo sol do verão na campanha, disse-lhe que era uma desonra ter aquele traste junto com lembranças tão boas e dignas da família. Dirigiu-se para os fundos da casa, depois voltou, entregando-lhe uma cuia, também já curtida dos anos de uso, e disse-lhe que aquela sim, era um emblema digno de guardar como um tesouro. Nela estava guardado um segredo, que no devido tempo se esclareceria. Levantando o braço, como num “te’a volta”, tornou a montar e retomou a estrada por onde viera. Torquato Filho, boquiaberto, ficou com o olhar fixo no horizonte vendo o fantasma de seu velho sumir no horizonte. Por ter ficado tanto tempo com os olhos arregalados, sentiu-os secos, com uma ardência insuportável, e percebeu que escorriam lágrimas pelas suas faces. Voltou a sentar, com a mesma tontura. Joana, que viera pegar um pouco de canela em rama no bolicho, viu-o sentado e fora de seu estado normal, acudiu-lhe, trazendo um copo d’água ao que ele recusou, pois queria apenas mais água quente para o chimarrão. A cuia que tinha na mão era a mesma que usava há tempos, e tinha certeza que o pai lhe dera outra. Não disse nada à companheira.
– Tem certeza de que tá tudo bem, meu velho? Não quer o remedinho que o...
– Mas bem capaz que eu vou engolir aquelas porcarias do doutorzinho da mula ruça. Já disse, minha velha, só quero a água quente; aproveita e já encilha este mate que tá um pouco lavado.
Joana retirou-se para o interior da casa, voltando em seguida com a água e o mate. Torquato estava intrigado, pois no mesmo lugar que avistara o cavaleiro chegando, havia uma polvadeira maior, indicando que se aproximava uma charrete, ou coisa parecida. Mais próximo, reconheceu tratar-se de sua velha tia Talita, conduzida por um piazote, filho de um agregado que cuidava da fazenda, ou do que restara dela. Amparada pelo braço de Torquato, a velha apeou com muita dificuldade. Assim que se sentiu firme no chão, fez o Torquato abaixar-se para que ela lhe desse muitos beijos no rosto, como era seu costume. Disse-lhe que tinha pressa, pois trouxera-lhe um presente. Mais um, pensou Torquato. Mas este tem um significado muito especial, assegurava-lhe a velha senhora, entregando-lhe o embrulho.
Joana, vendo o movimento à frente do bolicho, veio conferir quem chegara. Sabendo que a Tia Talita não lhe devotava muito carinho, com ciúmes do seu “filhinho”, apenas fez as honras de praxe, informou que as crianças estavam na escola, que a mais velha já andava de namorico, enfim, que as coisas estavam tudo em seu lugar. Perguntou como estava a Tia, e a gota ainda incomodando? Tinha melhorado da espinhela caída? Depois das lamúrias de sempre, voltou para o interior da casa e suas tarefas.
Neste ínterim, Torquato examinara o pacote, e, surpreso, viu aparecer em suas mãos a cuia que o vulto de seu pai havia lhe entregue alguns minutos antes. E ainda ouviu a Tia dizer que tinha um segredo ali. Que, estando ela já mais para o lado de lá, do que do de cá, sentia o dever de anunciar-lhe o que havia prometido ao velho Torquato no seu leito de morte. Ele ainda pensou que deveria contar à Tia Talita que o próprio pai tinha estado ali, há pouco, falando a mesma coisa. No entanto calou-se, porque a vertigem parecia voltar, esforçando-se para não adivinhar o que poderia haver de tão especial naquela cuia, que esperara tantos anos para se manifestar. Gritou para Joana que trouxesse o copo com água, e apurou o ouvido para apreciar o segredo que estava prestes a se revelar.

Parte Final – Pedro Brum Santos

Quanto mais eu rezo mais assombração me aparece. A sentença era da verve do velho Torquato, sempre que as coisas saiam-lhe atravessadas. Agora aqui está o filho bolicheiro, depois de um dia atribulado por visitas e presentes de outro mundo, enquanto Joana dorme a sono solto. Aqui está este filho, a pensar no pai, nos seus trejeitos, nos serões das auroras, quando as longas chimarreadas principiavam o dia muito antes de o sol surgir. Torquato, o filho, não saberá dizer se foi em sonho ou em vigília que o velho voltou a aparecer-lhe durante a noite. Falava-lhe com a mesma voz pausada daqueles chimarrões matinais, a mesma pose serena diante da cuia. Este era seu pai, figura inconfundível, perene, permanente. A cuia, como um ponto fixo cochilando no invólucro da mão rude descansada sobre a perna. Assim se acostumara a vê-lo e a senti-lo pela mocidade afora. Um conselho ali, um causo aqui, um plano acolá. Este era o pai companheiro que mais admirara e cuja ausência de vez em quando ainda lhe doía forte: a sombra de um rosto, o vulto da cuia relampeando do brilho das lavaredas e uma voz falando do fundo do escuro.
Primeiro foi um ruído no canto do quarto, perto da porta. Parecia um arrastar de cadeira. Desconfiado, Torquato espichou o olho. Em princípio não viu nada. Só quando a voz irrompeu da noite é que percebeu o vulto do pai. Começou como uma imagem difusa, sem contorno e, aos poucos, virou algo que se aproximava muito da imagem que guardara dos chimarrões das madrugadas. Passou-lhe rapidamente pela cabeça que o barulho teria despertado Joana. Mas logo esqueceu da mulher, deixando-a abandonada ao ressonar profundo que percebeu como uma réstia de realidade que dormitava a seu lado. Naquele momento, chegou a firmar convicção de que não estava sonhando. Logo mais, porém, enquanto, entre uma cuia e outra do chimarrão solitário da manhã, repassava as aventuras da trajetória insone, já não tinha mais certeza se, quando seus sentidos deram conta da figura do pai, ele, de fato, estava acordado ou tudo aquilo já era parte do agitado sonho que o perseguiu até a hora do despertar.
Sorveu fundo mais um gole de mate, mexeu com a bomba e ficou olhando a cuia que aquecia sua mão na hora fresca da manhã. A algazarra dos passarinhos não lhe desviava o curso do pensamento. Do meio da noite, seu pai lhe dizia que pegasse a cuia, aquela que lhe entregara no dia anterior e, na hora-morta de depois do meio-dia, quando a casa toda estivesse no recolhimento da sesta, fosse até o córrego d’água que passava no potreiro dos fundos. Devia, então, seguir em direção à nascente até o campo do Loretto. Que parasse no justo ponto onde, ao pé de um cerrinho, o córrego é mais largo. Que se chegasse à borda dessa pequena lagoa, pelo lado do cerro, mergulhasse a cuia e a deixasse assim por um tempo, segurando firme. A lagoa começaria a ferver toda. Não se assustasse e ficasse preparado, pois do meio da água surgiria uma mulher formosa, uma morena em trajes de rainha, com uma reluzente pedra vermelha a adornar-lhe a testa. Que lhe desse a mão e seguisse com ela, tendo apenas o cuidado de jamais lhe fitar nos olhos. Isso era tudo o que podia lhe dizer. E não esquecesse: o segredo estava em não olhar, um instante sequer, nos olhos da princesa.
Torquato pede mais água quente para Joana que, como de hábito, a esta hora, está envolvida com as lidas da cozinha. Por precaução ou recato, diante da mulher, prefere continuar com o silêncio sobre esse assunto de aparições e segredos de vidas passadas. Com os olhos acusando falta de sono, olha as prateleiras ao redor. A não ser por alguma alma desgarrada, esta é a hora morta do movimento. Passa-lhe pela cabeça que precisa ir à cidade. Os estoques de erva e cachaça não chegam até sábado. Esfrega a barba por fazer, no instante em que Joana aparece com a chaleira fumegando e a deposita ao lado do banco de três pernas, perto da porta da frente, onde o bolicheiro, amoitado, entre um matear e outro, observa em silêncio a paisagem recortada diante de si.
A água quente faz espuma na cuia cheia e Torquato sorve um trago longo e lento, que engole também devagar, aos poucos, sentindo o calor encher-lhe o peito e, logo abaixo, repousar macio no estômago. Um repuxão na bexiga lhe lembra que já tomou mate além da conta. Diurético, meu filho, faz bem pros rins. O ricto em sua boca trai a lembrança de tia Talita alcançando-lhe o mate encilhado e a água quente. Revê-se gurizote, ouvindo o pai contar sobre a salamanca do cerro, a mulher encantada numa lagartixa que tinha uma pedra vermelha na cabeça. Pobre do cristão a quem o encanto se desfizesse. A mulher tinha parte com o diabo e quem pegasse seu quebranto, estaria destinado a vaguear como um condenado até o fim de seus dias. O velho Torquato costumava dizer que muitos desses que encontramos pelos corredores, sujeitos que não dizem coisa com coisa, que andam a esmo, sem eira nem beira, muitos desses são quebrantados da tinhosa.
O bolicheiro enche mais um mate. As imagens de sua noite agitada vão e voltam. Num esforço de concentração, tenta ordená-las. Pelo que se lembra, primeiro foi aquela estranha visita do pai, que não sabe dizer se sonho ou realidade. O pai, com seu jeito manso de dizer as coisas, protegido pela meia-sombra igual como quando chimarreavam de madrugada, o pai associando aquela estranha história de mulher encantada com o segredo da cuia. A mesma cuia que, no dia anterior, ele, Torquato Filho, recebera como um presente retardado de seu velho, já morto há tantos anos, com aquela estranha indicação de que guardava um oculto que no devido tempo se esclareceria.
O mistério seria esse mesmo – seguir essa mulher que, estava visto, parecia ser a própria salamanca do cerro? E por qual motivo era dado a ele desvendar o sortilégio? Seu gosto pelas cuias teria guiado o espírito do pai? E se a história da princesa fosse um engana trouxa, algo para botá-lo a perder e condená-lo a vaguear pelo mundo? As conjecturas tomam a mente de Torquato, turvam-lhe o pensamento. Outra vez se perde no caminho de ordenar as imagens da noite. Pedaços do sonho que tivera ao amanhecer lambem seus sentidos como uma fagulha à toa, trazida pelo vento, que bate e se vai. Ao piscar imperceptível de seus olhos cansados, parece sentir o cavalgar da princesa a aninhar-se sobre seu sexo e a roçar os seios rijos, empinados, ao alcance de sua boca sôfrega – mas esses não são os seios de Joana, da jovenzinha, filha do chefe da subestação? A bexiga cheia e uma leve excitação trazem Torquato de volta à realidade. Há batidas de panela na cozinha. O bolicheiro larga a cuia. Uma vertigem discreta provoca um esforço para aprumar-se no banco. Parado, procura o ritmo certo da respiração. Espera a tontura passar e levanta-se. Compõe a garganta e sai a passo lento, contorna a casa. O ar puro de fora lhe revigora os músculos. A bexiga aperta. Ouve o sonoro canto do sabiá e apressa o passo para mijar escondido, atrás do arvoredo dos fundos.
O mijo retumba na terra fofa e respinga-lhe as alpercatas. Mijo gordo, espumante, força d’água caindo livre de comportas abertas. O bolicheiro olha para os pés e recua rápido, para não se molhar na poça que escorre em sua direção. O pensamento, porém, continua longe. O que vê, na verdade, é a sanga indicada pelo pai. Percorre-a mentalmente em direção à divisa do Loretto. Enquanto fecha a braguilha, com rapidez seu pensamento entra nas terras limítrofes e chega à lagoa do pé do cerro. A lembrança mais clara que lhe ocorre vem da época de enchente, quando a água transborda e leva tudo por diante, botando o corguinho pra fora das caixas por horas a fio. Ali, naquele lagoão do Loretto, se esconderia, então, uma mulher misteriosa? E aonde ela levaria? Cabedal escondido? Sorte grande? Ou desgraceira, desengano, doidice?
A vertigem ameaça outra vez. Torquato respira fundo, escora-se numa árvore. Logo adiante, uma fruta despenca do alto e esborracha-se no chão. O ruído de coisa partida, o som surdo de fratura exposta e a revoada barulhenta do bando de periquitos que, com o barulho, dispara sua marcha nervosa na direção do corredor, trazem-no de volta à vida corrente. A gurizada já deve estar de pé. Daqui a pouco começa o movimento no bolicho. Torquato apressa o passo. Sente-se mais confiante. Tem um forte desejo de afastar a má tenção do fantasma do pai, da herança da cuia misteriosa, do dito segredo da lagoa, enfim, sente que precisa controlar esse enleio que lhe trança os passos desde que essas visitas estranhas começaram a lhe aparecer.
Visitas estranhas? Nesse ponto, quando já se aproxima de casa, um cutuco lhe assalta. E se tudo não passasse de um feitiço instalado entre suas cuias? Sim, um feitiço trazido por aquele estradeiro que lhe bateu os costados antes que o fantasma de seu falecido pai e a presença estranha da velha Talita se achegassem para lhe atrapalhar as idéias! O feitiço, está visto, foi instalado por aquela estranha peça que o castelhano Ramón lhe presenteara! Ouve de novo as palavras do infeliz, como se ele estivesse agora, ali, ao alcance da mão – dava-lhe a cuia encapada com el cuero de los cojones del hijo de una puta que empezó esta disgracia.
No cruzamento dos fios é que se fortalece a corda. Torquato juntou rapidamente os tentos soltos. Veio-lhe à mente que seu pai, na visita do dia anterior, quando lhe entregou a dita cuia do segredo, havia se referido à doação do castelhano. O velho dissera claramente que era uma vergonha ter um traste daqueles entre as lembranças familiares. A mensagem paterna bem que poderia significar isso: um aviso, um alerta, algo para lhe chamar a atenção sobre um perigo instalado justamente ali, bem no coração de sua casa, entre sua coleção de cuias. O castelhano poderia ter sido o portador do feitiço. Daí esse rolo todo de mulher misteriosa, salamanca do cerro ou seja lá quem fosse a criatura tentadora. O pai bem que poderia estar querendo lhe dar esse aviso e, sabe lá Deus, não fora embaralhado pelos espíritos do mal. Como não tinha dado por isso antes?
Torquato chega à frente do bolicho e pára de novo. Levanta a cabeça e avista Nico Rengo no corredor. Então, num passo rápido, resolve examinar as cuias antes da chegada do primeiro freguês. Segue reto para a cozinha onde as crianças tomam café. Dá a bênção e abre o armário das cuias. Um tremor percorre-lhe a espinha: ali estão, lado a lado, como Deus e o diabo, como o direito e o avesso de seu destino, os dois objetos: o que lhe fora recomendado pelo pai e o presente do castelhano. Cerra as portas a segura-se no armário. A vertigem ameaça de novo. Desse jeito acabará tendo que tomar o remedinho do doutor de bosta. Joana entra na cozinha e avisa-lhe que tem gente. Torquato grunhe e, antes de deixar a peça, ainda se pergunta se, de fato, irá se decidir por uma das cuias ou se jogará as duas para o quinto dos infernos. Apruma o passo, compõe o peito e segue para tras do balcão.
– Bom dia seu Nico, como le passa, quéqui manda então?

sábado, 16 de maio de 2009

Leite derramado ou seria Água fervendo para o mate?

Com x se escreve xícara
Com x se escreve xixi
Não faça xixi na xícara
O que vão dizer de ti???

O romance Leite Derramado de Chico Buarque é um dos livros mais vendidos desde que foi lançado. Recorde sobre recorde.
É inegável que Chico Buarque é um monstro sagrado da cultura brasileira. A sua contribuição é impagável e seremos eternamente gratos enquanto apreciadores da boa música popular. Chico é um respeitável compositor e poeta. Suas músicas são hinos que serão lembrados por gerações.
Mas Chico também escreve romances. Li o Estorvo, mas não consegui avançar e deixei a leitura inconclusa. Budapeste enfrentei até o final, mas acabei dando de presente num amigo-secreto. A guria dava pulos de contentamento. É um bom livro, mas devo confessar que esperava muito mais do autor de Mulheres de Atenas. Esse é o nosso problema, esperamos de Chico a genialidade, o inusitado e na narrativa Chico não é genial, é, apenas, um razoável... bom escritor.
Leite Derramado foi lançado com uma edição de 70 mil exemplares. Com dois tipos de capas. Algumas pessoas adquiriram o livro por ser do Chico Buarque. Arrisco a dizer que muitas pessoas compraram os dois exemplares.
É evidente que uma edição envolve talento literário e comércio. O editor deseja vender e se o autor é reconhecido como um excelente escritor. Estaremos diante de uma obra-prima.
Como delimitamos a linha que divide a essência da arte daquelas puramente comercial? Há poucos dias comentei com um amigo: se tirarmos o nome de Chico Buarque da capa, como seriam as vendas? Acredito que despencariam.
O livro é bom, merece ser lido. Mas, no meu entendimento, o apelo comercial envolvendo o nome do autor extrapola a suposta ou prometida grandiosidade literária.
Mas o que tem que ver o Água fervendo para o mate do título desse artigo com o Leite Derramado do Chico? Não tem nada a ver. Da mesma forma que o título Leite derramado não tem nada a ver com a obra. Eu não sei de onde saiu. Acho até que se fôssemos regionalizar – que também seria uma boa estratégia comercial – eu colocaria como título, no lançamento em Bagé: Água fervendo para o mate. Em Santa cruz do Sul: Chope quente. Em pelotas: Ambrosia queimada. Que tal?
Enfim, será que com Leite derramado o Chico ficou vendo a banda passar?
A propósito, os versinhos acima são de autoria de Mario Quintana. Que coisa, hein!!!

quinta-feira, 14 de maio de 2009

As eleições e a greve

Recentemente foi eleita a nova direção da Apcef – Associação de Pessoal da Caixa Econômica Federal – embora uma associação, traz no seu bojo um histórico de lutas pela categoria desde os tempos em que os bancários da Caixa eram economiários. A Apcef foi o sindicato de quem não podia ser sindicalizado. Hoje, é uma associação, mas com uma forte inserção na luta, com a compreensão de que não substituirá o sindicato, mas estará conjuntamente lutando pelos direitos da categoria.
No processo eleitoral concorreram duas chapas. E como não poderia ser diferente, as divergências políticas foram acentuadas. A chapa vitoriosa, liderada pela companheira Célia Zingler, tinha explícita, em seu programa de gestão, o resgate da vocação de lutas da associação. A Apcef tem um patrimônio invejável nas colônias de férias. E é atribuição administrar esse patrimônio com parcimônia e transparência para oferecer conforto e lazer para seus associados. E ambas as chapas tinham o incremento do lazer para seus associados. Mas Célia e demais companheiros do programa “Somar” propuseram o avanço da associação no que tange os interesses políticos da categoria bancária. E essa chapa foi vitoriosa.
Esse recado veio da base dessa categoria que necessita respostas das direções dos sindicatos. O sindicalismo está arrefecido, mas há uma vontade de luta que transcende o nosso pacato imaginário. Há vontade nessa base, ela precisa ser provocada.
A greve dos bancários das carreiras profissionais da Caixa – engenheiros, arquitetos e advogados – também propõe um debate profícuo. Alguns paradigmas foram quebrados: a greve foi organizada nos grupos na internet e fora da data base da categoria – que seria traumático em outros tempos. E num primeiro momento, à revelia das direções do sindicato. Essa reflexão deve ser feita. As greves que virão não serão mais as mesmas. Urge que busquemos novas estratégias para o movimento, inclusive para buscar colegas que ainda não estão convencidos que a luta é dos bancários e também que as direções não são onipresentes e nem onipotentes e, sim, devem traduzir os mais puros anseios da categoria.
As eleições na Apcef e a greve na Caixa são exemplos de que a categoria precisa de novos horizontes para continuar lutando por uma empresa pública e digna de trabalhar.

domingo, 10 de maio de 2009

A porca e a Inês

A tradição política dos gaúchos faz com que cada eleição seja revigorada as esperanças de uma vida melhor. Uma atuação política voltada para os interesses do bem da comunidade. A política está entranhada nas nossas veias farrapas – maragatas ou chimangas. Mexe com as nossas emoções e paixão partidária. Tudo bem... mexia. As eleições do ano que vem – principalmente a de governador do Estado – trará temperos novos no panorama gaudério.
As últimas notícias protagonizadas pelas hostes petistas dão conta de uma inusitada e desconfortável aliança entre PMDB e PT. A bem da verdade, articulada pelos caciques de Brasília. Uma coligação desse porte seria algo como Honório Lemes e Flores da Cunha chimarreando tranquilamente e um capão de mato na pampa conversando abobrinhas numa primavera da década de 20. Ou um gaúcho fardado de Inter, dos pés à cabeça, ser ovacionado quando estiver no meio da Alma Castelhana. Eu não vejo grandes problemas nessa coligação. Alguém acredita em duende?
Se o palanque de Maria do Rosário esteve desfalcado por conta de uma disputa interna do partido, imaginem um palanque com o PMDB na cabeça de chapa apoiado pelo PT. Acho que será a desconstituição do PT como partido de massa, transformador e depositário das esperanças de um povo. Quando o PT estiver no mesmo palanque do PMDB estará se igualando na prática. Cairá por terra, em definitivo, o PT dos sonhos juvenis de uma geração que votou num metalúrgico para presidente. Aí sim, teremos o pragmatismo em sua essência e na enésima potência. Não haverá motivos para encontros, congressos ou prévias. Basta um encontro de meia dúzia de iluminados e decidir. Aliás, prática corrente em todos os partidos tradicionais.
Muitos históricos militantes do PMDB fazem referência ao velho MDB e dentro em breve serão honoráveis petistas fazendo saudações ao velho PT.
A minha dúvida é saber o que falta para o PT tornar-se um partido tradicional. Se já não é em sua plenitude.
Segundo notícias veiculadas na imprensa, o Planalto já enviou um recado para o PMDB dizendo que tem simpatias pela candidatura de Germano Rigotto. Aí é que a porca torce o rabo. Quem será o vice do “companheiro” Rigotto? Tarso? Raul? Koutzii? Olívio?
Quem terá a cara-de-pau de ir para a TV explicar que não era bem assim quando o PT criticava as privatizações do governo Brito? Afinal de contas, o PT mandou, ou não, a Ford embora como afirmavam Mendes Ribeiro e Cia?
Se o calendário aprovado pelo Diretório Nacional do PT for mantido e só em fevereiro entrar na disputa, a porca torce o rabo hoje e no ano que vem a Inês é morta.
A propósito, PT e PMDB promoverão risotos para festejar Rigotto governador. Quem viver verá?