quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Um par de meias

twitter.com/athosronaldo


As festividades de fim de ano aproximam as pessoas. Nos tornamos mais solidários, ofertamos Cidras aos trabalhadores que recolhem o lixo, ranchos e agasalhos às instituições de caridade. Desejamos felicidades, saúde, paz e dinheiro no bolso, que, convenhamos, ajuda bastante. Um ano que inicia sempre nos enche de otimismo. Renovamos nossas esperanças de que um mundo mais humano e igualitário é possível. Esquecemos as nossas agruras e nos abraçamos saudando o ano que entra e, se possível, saldando o ano que finda. Mas, certamente, sondando o parente que se achega só com a vontade. Pipocamos fogos nos céus e estouramos champanhas. Tudo para celebrar a alegria.
Para realizar nossos sonhos não abrimos mão de superstições e simpatias.
No primeiro minuto do ano umas colheradas de lentilhas são fundamentais para termos sorte. Vestir branco também significa harmonia e paz. Dizem que se comermos 12 uvas, uma para cada mês do ano, ajuda na prosperidade e dinheiro. Não há necessidade de comer uma uva para cada dia do ano, a sua fortuna não aumentará e você ainda poderá ter uma desagradável dor de estômago e sua entrada de ano novo ser uma correria. Embora os porcos vivam nos chiqueiros eles fuçam para frente, então: porco assado na virada. Porco assado light para os preocupados com as calorias. E nada de porco para quem está na berlinda da balança. Logicamente que na mesa não poderá faltar o panetone marca Big.
Quando jovem e estudante, gostava de ir ao cinema acompanhado e sempre convidava uma colega. Diante da bilheteria do Glorinha eu solicitava “Um par de meias, por gentileza”. É claro, recebia um sorriso da atendente. Hoje, peço um par de inteiras, mas não tem a mesma graça.
Atualmente, a minha única superstição de fim de ano, e que me faz lembrar as meias do saudoso Cine Glorinha, é usar um par de meias no pé direito. Assim, eu garanto que não entrarei no ano novo com o pé frio.
Enfim, não sei o que implica dar três pulinhos num pé só. Mas três pulinhos com o pé direito com um par de meias de lã deve ter algum significado.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Livro do Falcão

twitter.com/athosronaldo
Quem, colorado e com mais de 40 anos, não comemorou a conquista histórica do Internacional de 1979? O Internacional foi tri-campeão invicto do brasileirão daquele ano.
O Inter foi o time da década de 70. Naquela oportunidade fomos para a praça Saldanha Marinho comemorar o título. A presidente Vargas ainda não tinha sido descoberta para as comemorações do futebol. Como não tinha uma bandeira, me enrolei em uma colcha vermelha. E fomos, em bando, para a praça. A vitória inédita valia qualquer esforço.
Passados 30 anos Falcão, capitão e ídolo de uma geração, rememora o feito em um livro com depoimentos dos atletas daquela jornada.
“O time que nunca perdeu” li num fôlego só. É emotivo, sentimental e trata de uma época em que a camiseta ainda era valorizada, pesava mais que os euros de hoje em dia.
Talvez não veremos algo semelhante – um clube ganhar o campeonato de forma invicta – mas de qualquer forma reler essas memórias do Falcão, nos remete às conquistas de uma era marcada na mente dos que eram adolescentes e que sonhavam, também, como qualquer adolescente gaucho dos anos 70, em ser um campeão pelo Inter. Internacional era sinônimo de vitórias. Era sinônimo de bravura e esplendor.
Falcão trata com muita sensibilidade esse momento histórico e foi muito feliz ao narrar de forma mais ampla e democrática cada um dos depoimentos dos companheiros de equipe.
Um bom livro para se receber de presente nesse fim de ano cheio de retrospectivas desanimadoras e politicamente incorretas.

Pra não dizer que não falei das merdas

twitter.com/athosronaldo

O presidente falou merda
Num palanque no nordeste
Eita! Um cabra da peste
Língua que a gente herda
Com a minha ideia lerda
Eu vejo essa porcaria
Pois no meu dia a dia
Afeta a mente insana
Na corredeira aragana
É um fato que não sabia

Na merda todos estamos
Um faz de conta que não
Mas é na merda que o povão
Salta de galho em ramos
E assim sempre voltamos
No berço da pátria querida
Saudando essa triste vida
Sonhando que seja nobre
No bolso papéis e cobre
E uma evacuada sofrida

A merda transborda penico
É potente e volumosa
Por certo será prazerosa
No fim de baile do Chico
Naquele baita mexerico
De peidos e bostas sem fim
E eu até vejo por mim
Quem do aroma não escapa?
Sinto, assim, de inhapa
O cheiro do graxaim

Acabou o estoque de rima
E troco a merda por bosta
Tem até alguém que gosta
Seja grosso ou gente fina
Nesse olhar de relancina
Daquela cor amarela
Como gaiato na cancela
Na estância do Pau fincado
Na bosta de um colorado
Um chimango pisou nela

Essa antiga dualidade
Na vasta e larga pampa
Um índio que usa guampa
Mas luta por liberdade
Aquela velha hospitalidade
Na amizade mais profunda
Mas a payada imunda
De um gaúcho guapo e taura
Que se transforma em maula
Pois na bosta ele se afunda

Com merda volto ao tema
Para encerrar a payada
Nem chimanga, colorada
Mas vale esse dilema
Que essa vontade extrema
Na vida dos Silva Zé
Que deixou filhos e “muié”
E um antigo marca-touro
Então percebeu num estouro
Que merda todo mundo é.


Athos Ronaldo Miralha da Cunha

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Teatrinho


O provão foi instituído no vestibular de 1978. Eram 80 questões de caracter classificatório abrangendo todo o conteúdo. Esse provão aconteceu, apenas, naquele ano. Lembro bem porque foi o meu primeiro vestibular e um excelente desempenho em matemática. Meu pai disse que eu “lavei a égua” e meu avô, que eu estava na “ponta dos cascos”. Das 10 questões do provão e as 25 do vestibular, apenas uma ficou sem resposta, ou melhor, chutei na errada. Na disciplina de matemática eu estava afiado.
No entanto, em física e química a égua ficou suja e não era bem na ponta dos cascos que eu estava. E por esse motivo, no vestibular de 78, eu entrei em segunda opção no Curso de Ciências.
Na verdade, aqui começa a crônica. A primeira aula na UFSM lá no Centro de Educação.
O curso de Ciências oferecia 160 vagas. Como havia uma sobra, elas eram preenchidas com os vestibulandos que optavam pela segunda opção. Muitos que não logravam aprovação em Engenharia, Medicina, Odontologia, Fisioterapia e outros, também concorridos, cursavam um ano de Ciências para tentar novo vestibular.
No curso de Ciências havia uma disciplina, no primeiro semestre, que se chamava “Psicologia da Educação”. No momento não lembro quem era a mestre, apenas alguns detalhes da sua estampa e estilo, e também não lembro dos colegas.
Estávamos na sala de aula numa manhã de sol fraco e após fortes emoções pelos trotes que fomos submetidos. De repente, entrou no recinto uma baixinha espaventada, com nariz empinado e peito caído, disse que era a professora da disciplina e solicitou que cada um se apresentasse contando um pouco de sua vida. Após, sugeriu uma bibliografia e concluiu falando alguma coisa sobre a importância da psicologia na educação e elogiou o governo do presidente Geisel. Falou mal do prefeito e bem do reitor. O que eu não entendi bem o porquê.
Anotei atentamente os livros sugeridos, mas horas depois jogaria num lixo no corredor do Centro. Para esquecê-los em definitivo.
Então, a professora, do peito empinado e do nariz caído, dividiu a turma em três grupos.
Chegou diante do nosso grupo e apontou para mim.
– Tu vais ser o pai!
– Eu?
Apontou para os demais membros do grupo e afirmou.
– Tu vais ser a mãe, vocês dois os filhos e tu, que é gostosa, a empregada doméstica!
Achei aquilo tudo muito estranho. Termos deselegantes para com a caloura.
Passou para os demais grupos e fez a mesma distribuição de tarefas. Colocando nos outros grupos, por falta de gostosas, um mordomo e um jardineiro.
No final, falou para todos.
– Na próxima aula vocês deverão representar o cotidiano de uma família. Cada grupo terá 20 minutos para sua apresentação, depois nós faremos um debate acerca das situações familiares encenadas.
Teatrinho! Pensei cá com os meus botões paternos.
Para encurtar o relato.
Deixei minha família órfã de pai. Ora, um tímido missioneiro recém-chegado na Boca do Monte não viria para a Universidade Federal de Santa Maria para fazer teatrinho.
O que iriam pensar meus pais maragatos e meus vizinhos chimangos?
Não assisti a aula seguinte e não lembro mais do nome da professora e da fisionomia dos colegas, essas imagens se perderam nos anos e estão difusas. Também não sei como foi o desempenho da família sem a figura paterna. E, para falar a verdade, não fiquei sabendo para que serve a tal Psicologia da Educação. Hoje, acredito ser de muita importância, mas tenho que me dar um desconto, eu tinha apenas 17 anos em 1978. Eu era um “Alexandre Pato” sem talento para o futebol e menos, ainda, para a encenação.
No ano seguinte, sem teatro e com muitas integrais e derivadas eu ingressei na faculdade embasada nas ciências exatas. O curso tão sonhado e desejado para o qual havia me preparado. Afinal eu era fera em matemática.
Abandonei o curso de Ciências. Não encontrei mais a professora nem os colegas. Uma vez, ou outra, cruzei com algum remanescente da minha ex-família pela biblioteca ou pelo RU. A professora deve ter feito uma operação no nariz ou nos seios, sei lá. A Medicina tem avançado muito.
Alguns meses após a minha desistência eu encontrei um colega que disse que o teatrinho fazia parte do trote e que a professora, do nariz empinado e do peito caído, na verdade, era uma veterana do curso.
Mas aí era tarde demais. O mundo havia perdido um cientista.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

"Ah, ótimo!"

twitter.com/athosronaldo

Nós podemos usar a expressão “Ah, ótimo!” quando encerramos a leitura de um livro do Veríssimo. Diante de uma escultura de Rodin ou quando assistimos um golaço do Nilmar. “Ah, ótimo!” Afirmamos após um espetáculo teatral ou num show de rock.
“Ah, ótimo!” é a frase do ano.
Uma frase otimista que, nesse caso, exprime todo o nosso desencanto com a política e foi pronunciada pelo governador do Distrito Federal José Roberto Arruda do DEM, quando embolsava uma dinheirama. Imagens do descaso com o dinheiro público, com a liturgia dos cargos e uma afronta a religiosidade do povo. Reais distribuídos a rodo. Cenas explícitas de atitudes e diálogos nada republicanos.
Se Arruda fosse governador no Japão, teria um único destino: o haraquiri. Como é no Brasil, convoca uma coletiva, se diz injustiçado, fica no cargo e confia na justiça.
Se num passado recente os dólares estavam na cueca, no mensalão do DEM os limites da cueca foram insuficientes. Sem nenhum pudor o presidente da Câmara Legislativa, Leonardo Prudente, usou os bolsos do casaco, das calças e as meias. Transformou-se em um cardume de garoupas. Na coletiva foi prudente, era uma questão de segurança, pois não usa pasta. A deputada Eurides Brito saiu com sua bolsa abarrotada de notas. A bolsa foi transformada em um cativeiro de onças-pintadas. Vale lembrar que a garoupa está estampada na nota de cem reais e a onça-pintada na de cinquenta.
O presidente da República falou que as imagens não falam por si. A OAB emitiu uma nota afirmando que havia indícios. Mas a população assistiu, pasmada, as turbinas do propinoduto em pleno funcionamento. Para o cidadão comum o afastamento do governador deveria ser sumário e o processo de impeachment protocolado de imediato. Mas tem os trâmites legais... aguardemos.
O detalhe nisso tudo é que os “atores” desse melodrama de quinta categoria, confiam cegamente na justiça. É justamente essa a questão, os larápios – nas mais variadas esferas do poder – estatelados nas poltronas dos refrigerados gabinetes, confiam na justiça. Está mais do que na hora de a justiça tornar-se inconfiável para essa gente. Senão, daqui a alguns dias teremos mais um capítulo, em cadeia nacional, dessa infindável e repugnante novela.
A propósito. “Ah, ótimo!” Podemos dizer após saborearmos um panetone de chocolate.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Os espiões

A frase inicial do romance é emblemática. “Formei-me em Letras e na bebida busco esquecer”. Típica do Verissimo.
Em “Os espiões” a leitura flui como uma caipirinha de cachaça preparada no capricho. O livro é envolvente. Li em dois dias. Na minha opinião é a melhor narrativa do Verissimo. Os personagens têm a simplicidade e a excentricidade dos personagens de suas crônicas.
Uma narrativa leve e despretensiosa, mas com o fino humor do autor e que se resolve por completo. Todas as arestas são aparadas como fossem escritas para uma minissérie.
A trama começa com um editor recebendo os originais de um livro para análise. Na maioria das vezes os originais iam para a lata do lixo, mas o envelope vindo de uma pequena cidade do interior o deixa intrigado, principalmente pelo fato de o nome da autora, Ariadne, vir com um coraçãozinho no lugar do ponto no i. O editor fica fascinado pelo texto de Ariadne, só que o fecho trata de um possível suicídio da autora.
Os espiões, uma excelente pedida para essa semana de marmelada na decisão do campeonato... boa leitura.
Aliás, escrito por um colorado.

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segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Querência amada vermelha e azul

A última rodada do brasileirão promete ser emocionante. Pois o título está indefinido e quatro clubes almejam essa conquista.
O Internacional representa o Rio Grande nessa empreitada, que apaixona e nos devora em taquicardia. São trinta anos da última passeata. Três décadas do último brado solto na rua Acampamento. Uma vitória do Inter e um empate do coirmão no Maracanã dá o título de campeão brasileiro ao time da Padre Cacique. Assim, coroaremos um século de glórias.
Nesse momento gostaria de reportar a garra missioneira e a epopeia farroupilha. Os gaúchos, sejam eles maragatos ou chimangos, são inquietos, revolucionários e calorosos defensores das nossas tradições, dos nossos valores morais. Enfim, das coisas do Rio Grande. O fio de bigode ainda vale mais que um carimbo de cartório. E a ética e a hombridade valores muito caros nesse chão meridional. E nesse embate do próximo domingo, mais uma vez, a gauchada deverá estar unida em um só pensamento.
Em 1930 os gaúchos formaram uma aliança e irmanados marcharam para o Rio de Janeiro e amarraram seus cavalos num certo obelisco. Esse jeito de fazer e ser ficou marcado em nossas mentes. Esse estilo desaforado e caudilhesco é a marca vinda das lutas na pampa. É a marca de um guerreiro meio cavalo, meio gente.
No próximo fim-de-semana os gaúchos mostrarão ao Brasil que a chama crioula e libertária ainda brilha nessas paragens. Os ideais de Garibaldi, Neto e Bento galopam como um potro sem dono que vai livre como eu.
Cada gaúcho será um pouco Borges, Zeca Neto, Anita, Honório Lemos ou Flores da Cunha. Seremos revolucionários e poetas, uma mescla de Quintana e Prestes. Na última rodada do brasileirão os gaúchos estarão unidos para torcer pela dupla Gre-Nal. Assim, sentiremos quente e vibrante as sagradas palavras colocadas em nossa bandeira pelos farrapos: liberdade, igualdade e humanidade. Todos os gaúchos terão uma só voz e o mesmo sapucai ecoará por toda a pampa e transbordará as fronteiras desse estado. Todos celebrando o mesmo objetivo: as vitórias de Inter e Grêmio. Pois não está morto quem peleia e gaúcho unido jamais será vencido.
Saudando a memória de Teixeirinha no clássico “Querência Amada”, seremos no próximo domingo um só coração, porque o Rio Grande é maior, mas cabe dentro de cada um de nós. Enfim, quem quiser saber quem sou, olha para o céu azul... e para o horizonte vermelho.
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quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Sofrendo em Paris [*]

Dizem que dinheiro não traz a felicidade, mas, dizem, também, que ajuda sofrer em Paris. E uma pessoa sem dinheiro em Paris, como seria sua sofreguidão? O fato é que eu estava em Paris, com vontade de gastar e sem dinheiro. De qualquer maneira acredito que sofrer em Paris é sempre chique, com ou sem grana. Mas vamos à história.
Estava hospedado em um hotel na rue de Rivoli, mais precisamente o Hôtel de Ville. Devo dizer que tinha a quantidade de estrelas compatíveis com o tamanho de meu bolso. E localizado em um bairro compatível com o tamanho de minhas pernas. Sempre gostei de perambular, sem rumo, para conhecer as cidades em que visitava e Paris não seria diferente. Naquele fim de tarde eu caminhava pela rue Clos dês Blancs-Manteaux, e, em uma de suas travessas deparei-me com um pub que me pareceu ideal para complementar o fim do meu último dia na capital francesa.
O pub parisiense parecia agradável e aconchegante. No hall, um educadíssimo monsieur me recebeu com um meloso bonsoir convidando-me para entrar. Era magro, alto, estava todo de preto e tinha luvas brancas. Lembrou-me um artista recentemente falecido, mas foi só de relance, pois dentro do bar eu já havia esquecido a tal artista recentemente falecido. Naquele momento poucas pessoas estavam no recinto, três casais, um senhor solitário em uma das mesas e uma morena sentada em uma das cadeiras junto ao balcão. Cabelos lisos e muito bonita, mas parecia profundamente triste. Bebericava uma dose de Martini. Como a gente deve facilitar as coisas para o destino, sentei-me duas cadeiras adiante da moça, junto ao balcão.
Pensei em pedir uma dose de um purinho Chico Mineiro... brincadeirinha com o barman, mas desisti. Uma Cuba Libre? Seria um sacrilégio num pub em Paris. Então, pedi uma dose de um legítimo conhaque. Foi-se em uma talagada. Pedi outra. Estava meditando acerca da vida, minhas idas e vindas pela capital francesa – Musée Du Louvre, Mona Lisa, Tour Eiffel e, logicamente, a francesa ao meu lado –, quando, de repente, ouvi um soluço seguido de um suspiro. Minha vizinha de balcão estava externando sua tristeza e uma lágrima percorreu-lhe o rosto.
Um gaúcho nascido nas Missões, filho de pai maragato descendente de farroupilha, tinha que ser prestativo com a prenda francesa. Com a ponta de meu lenço colorado, enxuguei a lágrima da morena. Só não me perguntem o que fazia um gaúcho solitário em Paris dentro de um pub com um lenço maragato. Devo acrescentar que dos apetrechos da indumentária guasca eu tinha apenas o lenço colorado. Bem entendido?
A jovem senhora disse que se chamava Carla e que seu relacionamento com o esposo não estava muito bem. Muitos compromissos sociais e muitas viagens. E eu fiquei imaginando como muitos compromissos sociais e muitas viagens podem desgastar um relacionamento. Mas julguei que a jovem senhora era uma pessoa com muito dinheiro que estava sofrendo em Paris. Também falou que era cantora e eu fiquei com a impressão que já tinha visto aquele rosto em algum lugar. Convidei a bela Carla para sentarmos em uma discreta mesa próxima a parede. Ela pediu uns petiscos que não identifiquei pelo nome. E quando o garçom trouxe, eu continuei não identificando. Carla saboreava com gosto aquela guloseima. Eu sugeri um J.P. Chenet, mas Carla solicitou ao maître um Lois Corton 99. Naquele momento comecei a ficar preocupado com o tamanho da conta e com o provável rombo no meu cartão de crédito. Os assuntos fluíam e a bela Carla estava mais alegre, até esqueceu, por alguns instantes, os momentos de agruras. Adorava ver seu biquinho quando ela dizia oui. E eu custei muito para explicar para Carla o que queria dizer tchê.
A noite encaminhava-se serena, mas um tumulto em frente ao pub desvirtuou o que poderia ser prazeroso para um latino-americano e uma francesinha. Ânimos exaltados e muito burburinho. Percebi que a bela Carla ficou apreensiva e veio em minha mente, não sei por que cargas d’água, a tragédia com a Lady Diane. Então, a apreensão de Carla passou apara mim. Foram instantes muito tensos na porta do bar. Acho que alguém falou a palavra “parlapatão” em alto e bom som e imagino que deve ter sido com o dedo em riste. Foi um alvoroço geral, mas os ânimos foram se acalmando e, em minutos, reinava a normalidade. Alguns minutos após, o maître veio até a nossa mesa e se dirigiu, respeitosamente, a minha companhia. Achei o garçom meio petulante, mas as palavras dele foram convincentes. E eu quase desabei da cadeira.
– Senhora Carla Bruni, seu esposo Nicolas Sarkozy está lhe aguardando no carro aqui em frente ao bar – deu um sorrisinho amarelo para mim e saiu.
– Senhor gauchô – a bela Carla me chamava de gauchô e fazia biquinho quando pronunciava. – obrigado pela sua companhia – beijou meu rosto e saiu.
E eu sequer tinha visto o preço da garrafa do vinho. Seguindo os conselhos de uma ex-ministra, relaxei. E continuei saboreando o restante do Lois Corton 99.
– Monsieur gauchô, a conta – falou o maître ironicamente e com o infactível sorrisinho amarelo e idiota.
O suor correu pela minha testa ao ver os vários zeros a direita do 3. E aquilo tudo em euros.
– Fique tranquilo monsieur gauchô. A senhora Carla Bruni pagou a conta ao sair – e novamente o antipático sorrisinho amarelo.
– Então, por gentileza, gente boa – o gente boa eu falei em português. – me traga mais uma dose de conhaque – e devolvi o sorrisinho amarelo.




[*] 2º Lugar no II Concurso Literário Icoense 2014 – CLIC – poeta José de Oliveira Neto
 

sábado, 31 de outubro de 2009

Companheiro Judas

Uma foto em que aparecem no mesmo palanque Lula, Sarney e Collor sorridentes, faceiros e como íntimos amigos, nos faz pensar com os olhos no bojo da cuia de chimarrão e um dedilhar de milonga missioneira no aparelho de som.
Há poucos anos seria impensável um palanque com aquela formação. Uma heresia política, uma afronta a ideologia e a trajetória de cada um dos três. Se, em um passado não tão remoto, houvesse o encontro, os sorrisos seriam amarelos e todos estariam desconfortáveis no improvisado “altar”. A foto sinalizava o que estava por vir. Um acordão entre PT e PMDB com vistas às eleições de 2010. Acordos fazem parte do tabuleiro político de poder. Mas existem acordos e acordos. Nesse caso, todos se transmutam em companheiros com um glorioso passado de lutas. Tudo parece fantasioso, falso e frágil com um único objetivo: manter o statu quo. Para exemplificar, nesse jogo de faz de conta na política brasileira, com vistas a eleição do ano que vem, o presidente da Fiesp e um evasivo ex-craque de futebol tornaram-se eméritos socialistas. Seriam os neossocialistas? Certamente, estarão nos comícios de Dilma.
Com esse acordão de cúpula para a candidatura a presidente do Brasil, em alguns estados a coisa fica encruada. No Rio Grande do Sul, em que palanque o Lula subirá? A coalizão terá o palanque de Tarso e o de Rigotto/Fogaça. Ou, quem sabe até lá, os gaúchos também terão uma chapa única apoiada por Lula?
Para justificar essas alianças de ocasião o presidente Lula afirmou que “se Jesus Cristo viesse para cá e Judas tivesse a votação em um partido qualquer, Jesus teria de chamar Judas para fazer coalizão”. Ainda bem que Hitler está “mortinho da silva”, pois se ele voltar e tiver votos em um partido qualquer... (sic). Nem é bom pensar, mas o fato é que em política nada mais me surpreende. Se alguém disser que Ronaldo Caiado virou socialista, eu acredito.
Nessa coalizão a qualquer custo – lembremos que Judas se vendeu por 30 moedas – poderá haver uma traição. Se Pedro, que fazia parte do campo majoritário de Cristo, o negou três vezes, fica explícito que os cuidados devem ser redobrados ao se fazer acordos com os “Judas” de plantão. Um vice escolhido “a lo loco” poderá ser uma pedra no sapato por quatro anos.
Enfim, um velho vizinho maragato dizia do alto de sua sabedoria campeira “diga-me com quem andas e eu direi quem és”, mas em se tratando de acordos políticos e pragmatismo eleitoral o ditado não vale. Ou vale?

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Como montar um time campeão


Diante das frustradas expectativas da dupla Gre-Nal principalmente o Inter – que por vários anos começa o campeonato brasileiro como virtual campeão –, resolvi elaborar uma espécie de cartilha para montar um time vencedor. Ideias simples que ajudarão dirigentes incautos.
O primeiro passo é buscar um goleiro nas categorias de base do Inter que já foi uma escola de primeiro mundo. Qualquer guri que seja alemão e tenha a cara vermelha. Um iluminado que nos faça lembrar o “vai que é tua Taffarel”. Também pode ser um veterano goleiro em final de carreira, mas terá que ser alguém que tenha feito contrabando pelo rio Uruguai e arranhe no portunhol. Deve ser mulherengo e assíduo frequentador de prostíbulos de quinta categoria após os jogos de domingo. Tem que ter as mãos grandes, dedos tortos e o rosto com cicatrizes de entreveros com ferro branco.
Os zagueiros têm que ser dois brutamontes. Um deles tem que ser um castelhano que saiba recitar versos de Pablo Neruda e que tenha um cotovelo de aço. Tem que saber apreciar um bom vinho tinto. Pode ser chileno, argentino ou uruguaio e, no futuro, vir a ser candidato a vice-presidente em seu respectivo país. O outro deve ser do interior gaúcho e que tenha jogado descalço nas várzeas de Passo Fundo ou Santiago do Boqueirão. Se o sobrenome for Pontes tem a vaga garantida. Se for Perez manda embora.
Os alas não precisam saber jogar futebol. Basta terem um fôlego de leão e que tenham senso de direção para mandar a bola para o gol contrário. Curto e grosso: saibam dar balão para a área adversária.
Para o meio campo nós devemos buscar um guarda-roupa de quatro portas em Caçapava do Sul e mais dois castelhanos. Um uruguaio e um argentino. Necessariamente descendentes de tupamaros e montoneros. Os revólveres e as metralhadoras eles deixarão no vestiário. Por precaução será colocado detector de metais na entrada do gramado caso eles queiram entrar em campo com armas de fogo. Não seria leal com a equipe adversária.
Dois pontas de ofício e semi-analfabetos, mas com o mesmo senso de direção dos alas. Não precisa ter o mesmo fôlego, mas que treinem com chuteiras de ferro. E que sejam mandados pelas suas mulheres. Em casa devem dizer amém e no jogo partir o ala adversário ao meio.
O centro-avante não precisa ser humano, tem que ser alguém mais próximo dos macacos que saiba pular, xingar, levantar os braços e botar a cabeça na bola.
O técnico tem que usar expressões tipo: bosta, guampa, pata, corno e não deve chiar nas palavras com “s”. Se por um acaso resvalar e chiar nas palavras com “s” deve ser considerado “persona non grata” em toda a pampa “gaucha”. E despachado para seu estado de origem.
E todos devem ser tratados psicologicamente pelo analista de Bagé.
Enfim, cumprindo todo esse roteiro teremos times campeões, só não sei se será de futebol.

sábado, 10 de outubro de 2009

O renguinho da maratona


Todos os anos nossas expectativas são renovadas, mas na realidade o que renovamos no final das negociações são as nossas frustrações com a nossa valorização profissional e aumento real dos salários.
Meu pai tinha uma maneira bem simples de encarar os dissídios – ele era ferroviário no tempo da Maria-Fumaça, Era Vargas e ditadores em geral –, dizia ele: dissídio é índice, o resto é conversa mole para engambelar o trabalhador. Claro que estamos em outros tempos e as nossas negociações não se resumem ao índice e temos uma democracia e um presidente oriundo do povo.
Em todos esses anos, nas assembléias, volta à baila a questão da mesa única. E não será diferente enquanto não for feita uma consulta à categoria para vermos o seu real anseio. A mesa única é uma questão política que resolveremos (?) nos congressos da categoria. Mas temos que ter ciência que é polêmica.
Com relação ao ano de 2009 temos um acordo praticamente aceito pela categoria na Fenaban. No entanto, nas questões especificas dos bancos públicos temos o dissídio encruado. Com ênfase nas negociações da Caixa. E não é a primeira vez nos últimos tempos – diga-se Era Lula. No tempo de FHC era encruado e aniquilado. Bem-entendido? Aliás, quando penso em FHC me vem à mente a privatização da Vale e o sangue me sobe à cabeça.
Bueno, no Banco do Brasil, sem traumas, o índice passou de 6 (Fenaban) para 9%. Assim mesmo em algumas bases foi rejeitado. Na Caixa a proposta foi, simplesmente, insuficiente. Um colega afirmou, em tom jocoso, que a Caixa é o primo pobre dos bancos públicos. Diria que é o filho bastardo. Será que é um prêmio por ser na Caixa onde há maior mobilização?
Estamos num impasse: até quando levaremos a greve? Qual será o momento de encerrarmos esse movimento? Sabemos todos que é mais difícil sair do que entrar em uma greve. Qual o índice que fará com que voltemos ao trabalho? Eu defendo que tenhamos os mesmos 9% dado ao Banco do Brasil. Porque se nós olharmos a defasagem salarial da Caixa e do BB nos últimos 15 anos, abrangendo FHC e Lula, veremos que dará algo em torno de 90 a 100%. Então 3% acima do índice da Fenaban para os bancos públicos é um pequeno e justo avanço na recuperação das perdas. Aí, sim, poderemos dizer que nas negociações específicas, o governo Lula acenou com a recuperação de nossas perdas.
Caso contrário, (Antecipadamente peço desculpas por ser politicamente incorreto, mas a metáfora é espirituosa e bem-humorada), continuaremos – como disse o colega Rejo – o renguinho da maratona, com entusiasmo cheio de vontade, mas sempre correndo atrás e chegando atrasado.
– Esperem por mim! Esperem por mim! Esperem por mim!

terça-feira, 29 de setembro de 2009

A dura vida em Honduras


Antes de a crise estourar em Honduras, alguém sabia que Tegucigalpa era a capital? Particularmente, confesso que não. Nessa aula de geografia eu deveria estar para lá de Bagdá.
Buscando informações acerca desse imbróglio na América Central, percebi que a palavra Tegucigalpa é pomposa. É alguma coisa superior. Imagina alguém dizer “Eu sou nascido em Tegucigalpa. Eu fiz pós em Tegucigalpa”. As portas se abrem como por encanto. Essa sequencia de sílabas é alguma coisa próxima a um alinhamento de planetas. Eu achei muito chique uma transmissão de Tegucigalpa. Até acho que as olimpíadas de 2016... bom, deixa assim.
O fato é que em Honduras a vida anda dura. Um presidente latifundiário oriundo da oligarquia agrária resolveu consultar o povo para mudar a constituição. Manuel Zelaya queria alterar a constituição no intuito de permitir a reeleição. Como o mandato de quatro anos sem reeleição é uma cláusula pétrea, a Suprema Corte não gostou. Uma turma de ex-companheiros também não e os militares muito menos. Assim, numa madrugada o Mel Zelaya é despachado num voo para Costa Rica. Tanto a comunidade internacional como a comunidade gremista não gostaram. E todos acharam que a democracia deveria ser restabelecida em Honduras com a volta do presidente deposto. Roberto Micheletti, o presidente que assumiu, não gostou de ser chamado de golpista. O mundo todo debateu se foi golpe ou não. O Zelaya entrou clandestinamente no país e se refugiou na embaixada brasileira em Tegucigalpa. Mas a nítida impressão foi de que Zelaya ocupou a embaixada brasileira e a transformou em palanque político para retornar ao poder pelos braços do povo. Novamente, o Micheletti não gostou e, de um golpe só, fechou emissoras de rádio e televisão e introduziu o estado de sítio. Relançando antigos filmes de Costa-Gavras.
Lula disse que não reconhece governo de golpista. O governo brasileiro está correto em não reconhecer governos de ditadorezinhos que calam a imprensa, restringem direitos civis e rasgam a constituição, principalmente se for um paisinho chamado Honduras.
Para mim, modesto palpiteiro, a resolução seria simples. O Zelaya volta para as suas fazendas como um presidente aposentado. Funda a Fundação Mel Zelaya de combate a fome para deduzir alguns trocados no imposto de renda. Micheletti antecipa a posse do presidente eleito em novembro e todos vivem felizes para sempre... simples. Mas as coisas não são tão simples e essa crise em Honduras pode ser maior que a greve dos bancários.
Pode ser insensibilidade minha com os hondurenhos, mas eu estou preocupado em saber o nome gentílico de quem nasce em Tegucigalpa. Pois Tegucigalpa é um nome altissonante e a gente enche a boca ao pronunciar. Eu fiquei dois dias com essa palavra martelando na mente: Tegucigalpa, Tegucigalpa, Tegucigalpa, Tegucigalpa. Afinal de contas, quem nasce em Tegucigalpa é...

domingo, 27 de setembro de 2009

"Caçapava não se entrega"


Quando recebi o convite para escrever uma crônica sobre a cidade de Caçapava do Sul, pressenti um grande desafio. Caçapava tem muita história para ser contada e não seria eu a melhor pessoa para esse fim. Minha ligação com a cidade se reduz a um projeto Rondon na Vila Sul no início da década de 80 e, recentemente, uma visita a feira do livro.
Naquele projeto Rondon, num mês de julho perdido no passado, eu senti na pele o vento Minuano soprando gelado da pampa. Foram duas semanas de muito frio do inverno e muito calor humano de Caçapavanos.
Uma feira do livro nos faz pensar. Uma cidade que organiza uma feira do livro é uma cidade que fomenta a cultura, a arte, e é instigada pela inquietação.
Pensando sobre o Projeto Rondon e Feira do livro, resolvi dar uma cor a essa crônica. E optei pelo vermelho. O vermelho nos remete a outras reflexões que também tem tudo a ver com segunda capital farroupilha.
Tenho um passado maragato, pois meu avô ostentava um garboso lenço vermelho. E meu pai era um fanático torcedor do Internacional de Porto Alegre. Com essa ascendência, era lógico que me transformaria em um fervoroso colorado e, consequentemente, simpático às causas maragatas. Assim a cor vermelha está presente em minha vida desde tenra infância.
A cor vermelha simboliza a paixão, é “caliente” e traz no seu bojo a rebeldia, a revolução. Uma inquietude com o que está posto. E quando falamos em revolução invocamos a Revolução Farroupilha. Caçapava foi domicilio e berço de heróis e está gravada nos anais das nossas glórias. É evidente que, nos dias de hoje, Caçapava tem chimangos, maragatos, gremistas e colorados. A convivência é harmoniosa e a rivalidade fraterna. Mas como colorado que sou também gostaria de falar de outro ilustre filho de Caçapava e que também nos remete ao vermelho. Assim, resolvi incluir nessa crônica um humilde caçapavano. Não era revolucionário e não era farroupilha, mas foi ídolo em minha adolescência. Chamava-se Luis Carlos Melo Lopes. Craque da bola e um dos responsáveis pelas conquistas do Internacional. O nosso grande centro-médio Caçapava, a muralha que barrava os ataques adversários.
Para homenagearmos a cidade de Caçapava do Sul, é justo que relembremos o craque nascido nessa terra e que deu tantas alegrias ao futebol gaúcho.
Nos dias atuais somos tomados pelo pessimismo em virtude do grau de desmandos que assolam o país, sentimos falta de heróis e de guerreiros para serem novas referências. Precisamos de novos farroupilhas para ressaltarmos a ética e novos Caçapavas para barrarmos a indecência. O brado “Caçapava não se entrega” se equivale a “Esta terra tem dono”. Assim, mostrarmos ao mundo que nosso coração bate com paixão e oferecemos um abraço fraterno porque aqui, também, a fraternidade é vermelha.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Que loucura Jorge!!


O encontro foi casual.
Num dia de chuva Mário oferece abrigo em seu guarda-chuva para a linda Iracema atravessar a rua.
Debaixo da marquise Iracema estava sorridente e simpática. Mas tudo ficou no “muito obrigado” e no “agradeço sua gentileza”.
Mario ficou abobado pelos lábios carnudos de Iracema e o seu alvo sorriso.
Mario passou a tarde pensando em Iracema numa desilusão de dar dó. Conformado, pois dificilmente a encontraria outra vez. Mas a ironia do destino ainda estava para pregar mais uma peça. Dois dias após, Mario estava numa fila para assistir ao show de uma banda gaúcha no Gigantinho. Caminha lentamente para entrar no ginásio quando de repente vira-se. Quem estava ali ao seu lado? Ela mesma, a deslumbrante Iracema.
– Você não á a moça da chuva, ou melhor, a moça que se abrigou em meu guarda-chuva?
– Isso mesmo! Estou lembrando, você... veja como é o destino. Muita gentileza sua.
Ficaram juntos e se divertiram assistindo ao espetáculo dos roqueiros. Pularam e cantaram durante duas horas. Ao final, Mario convida Iracema para irem a um bar. Na mesa do bar a conversa fluía solta. Iracema ria das frases de efeito de Mario. Mario ria do sorriso de Iracema.
Naquela mesma noite foram para o apartamento de Iracema. Ao som de Martinho da Vila.
//É devagar. É devagar. É devagar. É devagar. Devagarinho//.
À meia-luz, começaram a dançar no meio da sala. O primeiro beijo foi o sinal. Mario colocou a mão por dentro da calça jeans de Iracema e acariciou seu ventre. Em instantes estavam rolando abraçados pelo chão aos beijos e gemidos. Quando ambos estavam despidos, Iracema pára e faz uma indagação.
– Marinho! Posso te chamar de Jorge?
– Jorge? Meu nome é Mario.
– Sabe o que é Marinho, eu fico muito excitada falando o nome de Jorge quando estou transando. Não é nada com você é que Jorge me deixa louca. Eu falo Jorge o tempo todo e fico doida. Fico doida e faço tudo o que tu quiseres, Marinho.
– Então tudo bem.
Mario estava imaginando mil coisas com os lábios de mel de Iracema. Completamente nus no meio da sala, Iracema começou a acariciar Mario com seus lábios carnudos. Mario urrava de prazer.
– Ssilêêêênciiiooooooo vocês aí em cima – foi o berro que veio da rua.
Mario e Iracema estavam em outra dimensão e não ouviam nada além de seus gemidos de dor e excitação.
– “Ceminha” vira de costas? – Ceminha era como Mario começou a chamar Iracema.
– Viro Jorge. Vem Jorge. Que loucura Jorge!
– Hhhuuggghuuuhhuuu! Mario estava exausto e acabado.
Iracema gritava, gritava para todo prédio ouvir.
– Que loucura Jorge. Que loucura Jorge. Que loucura Jorge. Que loucura Jorge. Que louuuuccccuuuuuuuuuura Jorge.
De repente todo prédio começou a gritar e foi uma gritaria infernal e uníssona. Em ritmo de samba. /Que loucura Jorge. Que loucura Jorge. Que louuuuccccuuuuuuuuura Jorge.//
Sentado no sofá Jorge, ou melhor, Mario saboreava um cigarro. Cantarolava um samba de Adoniram Barbosa. // Iracema! Eu bem lhe dizia, cuidado atravessar a ruuua, eu falava, mas você não me escutava não. Iracema você atravessou contramão.//

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Fio de bigode


Em outros tempos, por essas bandas, existiu o fio de bigode. Uma atitude de pessoas sensatas e honradas. Uma expressão para selar um acordo. O fio do bigode era a garantia da palavra empenhada que valia bem mais que uma certidão. E não faltam por essas paragens, nobres cidadãos com uma vasta barba para ofertar um fio num empenho verbal diante de uma tribuna, de uma plateia.
No entanto, a palavra é dita e desdita no dia seguinte. Hoje, não vale mais o que foi vociferado, acordado ou escrito. Esqueçam tudo que escrevi. Nós já ouvimos essa frase e ficamos boquiabertos. As palavras são fúteis e desacreditadas e tudo se encerra num grande conselho de sobrenome Ética. O mais recente fato foi o anúncio, em caráter irrevogável, do senador Aloizio Mercadante de sua renúncia à liderança do PT no Senado. O irrevogável tornou-se “irrerrevogável”.
O arquivamento das denúncias contra Sarney não coloca fim nessa crise do Senado. A Câmara Alta está estagnada. O marasmo, as lamúrias e as desculpas são as marcas dessa trágica legislatura. Todos os nobres que se explicam viram coitadinhos. Todos têm uma versão convincente. Como se nós, espectadores, fôssemos um bando de néscios. Somos?
A crise continuará porque os personagens desse dramalhão são os mesmos. Mas temos muito a lamentar. Quando olhamos para o passado do PT, e os motivos pelos quais estudantes, trabalhadores e intelectuais desfraldaram uma bandeira vermelha com uma estrela amarela, não conseguimos ver o que pode ser diferente doravante. Não há mais paixão. O coração não palpita como outrora. O PT mudou e muitos militantes não acompanharam essa mudança. Continuaram sonhadores.
Quando o bigode do Mercadante torna-se igual ao bigode de Sarney, o fio de bigode como símbolo da palavra empenhada, vira passado longínquo. Vira peça de ficção.
O que sobra para a política é a novidade, o inesperado. Algo que modifique essa previsão matemática, essa fórmula carcomida. Esse produto cartesiano. A dualidade é uma rigidez que limita e empobrece o debate. Se faz necessária a poesia de uma dialética confusão. Não precisamos do pronto e acabado, do taxativo. É oportuno que experimentemos o esculhambado e por fazer.
Existe alguma ação mais singela do que pisar na grama molhada e comer um pêssego num fundo de campo e – citando Mario Benedetti no poema A ponte –, perceber que em algum lugar alguém nos espera com um país. Nos dias de hoje, pouco provável. Nós queremos uma paixão avassaladora que nos devolva às ruas, às praças e aos comícios em 2010. Seja qual for a cor da nossa bandeira. Ou a quem desejar: um simples fio de bigode.

domingo, 23 de agosto de 2009

África do Sul X Eslovênia *


Na Copa de 2002, realizada na Coréia e Japão, os jogos eram noturnos e nós tínhamos a torcida coruja. Uma torcida que varava as noites para assistir os principais confrontos.
Em uma madruga Jurema tem um sobressalto.
– Acorda Teobaldo! Acorda!
– Hummm... hein... o que é mulher?
– Acorda Teobaldo! Acorda!
Com um forte cutucão no marido, Jurema desperta o sonolento e lento Teobaldo no meio da noite. O visor do rádio-relógio marcava 4 horas da manhã.
– O que é Jurema? Tu ta ficando louca... no bom do sono. Bem na hora que eu iria chutar um pênalti. Isso é sacanagem e da grossa. Bem na hora que eu ia fazer um gol no Mazurkievski.
– Tão tocando a campainha, vai ver quem é.
– Quem será o maluco... acordar as pessoas a essa hora da madrugada.
– Vai lá atender, Teobaldo. Pode ser uma emergência.
Teobaldo, meio dormindo, levanta-se, coloca as pantufas verdes com pigmentos amarelos e dirige-se à porta. Tateando interruptores e arrastando pantufas pela casa adentro. Imagina doença na família. Pensou em uma tia de Caxias que tava meio mal de vida. – Com o pé no estribo – como se diz na campanha.
– Era só o que faltava! – comenta baixinho para si. – Quem sabe algum vizinho distraído, cheio de álcool após uma noite de farra.
O som estridente retumbava em seus ouvidos.
– Calma já estou indo – responde diante da insistência da “visita” em apertar o botão da campainha.
– Sim? Boa noite, bom dia... sei lá.
– O senhor é o proprietário da residência?
– Não! Sou o amante de minha mulher. Que cê acha?
Teobaldo boceja longamente, escora a cabeça no marco da porta, quase dormindo. Ainda não vislumbrou a fisionomia do indivíduo a sua frente. Sente-se um traste humano semi-acordado. As faces cansadas e os ombros caídos são consequências de uma noite mal-dormida. Ainda lamentava o gol perdido contra o Mazurkievski.
– Eu sou o pesquisador do Ibope e gostaria de saber quantas pessoas estão assistindo o jogo da África do Sul contra a Eslovênia?
– Hãm??!!
O único barulho ouvido por Jurema foi o estrondo da porta, fechada violentamente. Em seguida os passos de Teobaldo, calmamente, em direção ao quarto.
– Tem gente que não tem o que fazer. Pesquisa do Ibope. Por que não vai fazer pesquisa na China? Ora! Me aparece cada um!
– Quem é esse tal de Mazurkievski?
– O goleiro do Uruguai.
– Teobaldo, acorda Teobaldo. O Uruguai não está jogando essa Copa. Dããnnn.
– Da Copa de 70, Jurema, eu estava batendo um pênalti na Copa de 70.
Virou para o lado e dormiu o sono dos justos.
– Goooooooooooooooooollllllll.
Jurema acorda sobressaltada.
– O desgraçado do juiz anulou.
– Dorme, Teobaldo! Dorme!

* 4º lugar no concurso literário de contos crônicas e poesias 2009 da FECI – Fundação de Educação e Cultura do Sport Club Internacional.

A hora de a anta beber água


Em algumas situações em que estamos prestes a tomar uma decisão ou uma atitude de forma contundente e essa deliberação for definitiva, concluímos taxativamente e de caráter irrevogável. “É hora de a onça beber água”.
No atual cenário político com essa avalanche de denúncias, dossiês, acusações e impunidade generalizada, somos acometidos por um sentimento de decepção, de desilusão, de que as coisas nunca irão melhorar. E que, resignados, devemos conviver com os desmandos na política.
Em pouco tempo o debate ideológico, filosófico e do pensamento político, estará num passado remoto. Serão folhas carcomidas de um longínquo outono. Como entendermos Collor, Sarney e Lula abraçados como velhos e antigos amigos. Sem medo, o pragmatismo venceu a esperança e a ética foi pisoteada e varrida, mais uma vez, para debaixo do tapete. Na hora de votar pelo arquivamento das denúncias contra Sarney, a senadora Ideli Salvati virou o rosto para não ser filmada. É demais! Salva-te Ideli. Mas o companheiro Zé Sarney e o conterrâneo Espiridião Amin serão eternamente gratos. A mim, soa estranho.
Nas eleições anteriores um eleitor de Cruz Alta, para demonstrar toda sua indignação, usou um nariz de palhaço para votar no primeiro turno. Outros eleitores sentem-se como o nosso robusto mamífero que vive por essas bandas do sul do Brasil: uma anta.
E como não sê-lo? Diante dos descalabros dos últimos acontecimentos, como não nos sentirmos uma anta quando recebemos o depauperado contracheque?
Consta que Heráclito não era grego e não viveu 5 séculos antes de Cristo. E, sim, era natural de um distrito de Cambará do Sul e viveu errático por várias cidades serranas na primeira metade do século passado. Solitário e na miséria, terminou seus dias em Anta Gorda. Tornou-se um dos mais conhecidos filósofos guascas. Deixou um legado que ainda hoje é estudado nos cursos de graduação. “Uma anta não se banha duas vezes no Rio das Antas, pois nem o rio nem a anta serão os mesmos”. Mesmo que a anta não se banhe e que vá, apenas, bebericar uns goles de água no Rio das Antas, ela, ainda, não será mais a mesma. Profundo? Em que margem do rio você está? Para citar Mario Benedetti: Será que na outra margem alguém te espera com um pêssego e um país? Nos dias de hoje, pouco provável.
Nem todos nós temos um rio para nos banharmos, mas nas próximas eleições, antes de me deslocar para a seção de votação, tomarei, por via das dúvidas, dois copos de água. Será a nossa hora de beber água.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Amigos para sempre

Ao que tudo indica o Sarney permanece na presidência do senado e ninguém sofrerá espécie alguma de punição por falta de decoro parlamentar. As ações contra Sarney e Cia foram arquivadas pelo presidente do Conselho de Ética Paulo Duque. Esses últimos acontecimentos políticos são propícios para algumas divagações... e lembranças.
Há exatos 20 anos, um jovem candidato a presidente da República travestiu-se de Caçador de Marajás e percorreu o Brasil pregando a moralidade na política e uma varredura na corrupção.
Naquela oportunidade Collor de Melo chamou Sarney de irresponsável, desastrado, fraco e omisso. Um ditador de opereta e político de segunda classe. No espaço eleitoral colocou um depoimento da ex-companheira de Lula acerca de um possível aborto. Em um dos debates afirmou que não tinha um aparelho de som igual ao de Lula. Era um modesto candidato. O Caçador de Marajás tinha os olhos incisivos, penetrantes e irascíveis. E, digamos, um temperamento algo explosivo.
Como sabemos, Collor sofreu impeachment e teve dez anos para esfriar a cabeça na sua paradisíaca Alagoas. Mas Elle voltou. Atualmente, como senador, passados vinte anos, parecia um pacato cidadão. Um obscuro e inexpressivo senador a vagar pelos corredores do Congresso sem a empáfia de outrora. Então, ressurgiu das cinzas num bate-boca com Pedro Simon. Os mesmos olhos incisivos, penetrantes e irascíveis. Num jogo de cena e dedo em riste mandou o senador gaúcho engolir e digerir suas palavras.
Como o mistério de um assassinato na novela – quem matou Salomão Ayala? – ou uma tunda bem dada numa vilã em horário nobre, de tempos em tempos, alguém é obrigado a engolir a contragosto uma estranha iguaria. Brizola engoliu um sapo barbudo. Zagalo queria ser engolido. Agora, Pedro Simon deveria engolir e digerir palavras. Qual será o próximo condimento na bandeja dessa próspera pizzaria? Collor também chamou o senador de parlapatão – obrigando a maioria dos brasileiros a recorrer ao Aurélio –, o Senado também é cultura e o senador é um homem culto. O vocabulário dos brasileiros ficou enriquecido. Confesso: pensei que parlapatão fosse um enorme pato falante.
No embate Collor estava defendendo, fervorosamente, o presidente Sarney, antigo desafeto de 89. Há alguns dias num palanque no Nordeste havia recebido afagos e elogios de Lula, antigo desafeto de 89. Vinte anos são suficientes para sacramentar uma amizade? Os inimigos de ontem são amigos e confidentes de hoje. Como será o amanhã? Responda quem puder. Mas eu acho que está mais para Amigos para sempre.
Esses episódios fazem da política a mesmice. Num país em que um Duque serve uma pizza republicana, ficamos com sérias dúvidas se no futuro alguma coisa poderá ser diferente.
Enfim, eu só teria uma dúvida: Collor conseguiu comprar, ou não, um aparelho de som igual ao de Lula?

terça-feira, 28 de julho de 2009

Primavera con una esquina rota


O belo romance editado pela Alfaguara Primavera num espelho partido não surpreende, porque o talento de Mario Benedetti não causa surpresa. Ao terminarmos a leitura percebemos que somos um pouco mais humanos. Um pouco mais gente. Ao abrirmos um romance de Benedetti temos certeza de uma agradável companhia.
O protagonista da narrativa, Santiago, é um preso político da ditadura uruguaia. Comunica-se com a família por cartas, e nessas correspondências são tratadas as agruras do cárcere e as incertezas dos familiares no futuro.
A narrativa passeia pelas vozes dos personagens, inclusive, nos relatos vividos no exílio pelo próprio Benedetti. Mas o autor do excelente A trégua supera-se na criatividade e na ludicidade quando Beatriz, a filha de Santiago, assume e narra a história: tango é uma música triste que se canta quando se está alegre para ficar triste de novo. A passagem pelo aeroporto eu deixo para o leitor descobrir. Bem como a notícia a ser dada a Santiago quando de sua liberdade.
O texto de Mario Benedetti é tão envolvente que passa a sensação de que poderíamos, a qualquer momento, nos encontrarmos em uma esquina – talvez rota – em Montevidéu para tomar um café.
Um detalhe apenas ficou meio estranho, o título em espanhol Primavera con una esquina rota foi traduzido para o português como Primavera num espelho partido. Ficou meio “roto” embora mais poético. Mas o porquê da Primavera fica evidente no romance.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

O argentino não era o culpado

A mídia esportiva foi praticamente unânime em afirmar que o elenco do Internacional para o ano de 2009 era um dos mais qualificados do Brasil. Apenas um inexpressivo comentarista arriscou que o Inter seria o cavalo paraguaio da competição – a exemplo dos “atentados” contra Bush, eu quase atirei um sapato na televisão – mas mantive a calma diante da estultice do jornalista e do prejuízo com o conserto.
O fato é que o Internacional decidiu o campeonato Gaúcho, pelo segundo ano consecutivo, com uma estrondosa vitória de 8 a 1 sobre os adversários de Caxias do Sul. E lamentamos que o oponente não tenha sido o co-irmão da Azenha. Posteriormente, o colorado dos pampas decidiu a Copa do Brasil e a Recopa Sul-Americana.
Aqui começa a estória do argentino pé-frio.
A turma se reunia para assistir aos jogos do colorado. Essas reuniões, regadas a cerveja e tequila, começaram em 2006 com a vitória contra o Barcelona – que é sempre bom lembrar para levantar o moral – e naquele primeiro jogo da decisão da Copa do Brasil, contra o Corinthians em São Paulo, apareceu um argentino, assim, meio do nada. O castelhano era oriundo de Rosario e intercambista do curso de veterinária. Dois fanáticos e desconfiados colorados entreolharam-se sestrosos, mas logo acataram o novo torcedor, pois o gaucho era San Lorenzo desde criancinha, time que revelou o D´Alessandro. Sendo assim, ficou enturmado.
Ao final da primeira partida no Pacaembu, diante dos gols do Corinthians, alguém comentou que o castelhano era pé-frio, mas os demais não deram a menor bola, o cara era da terra de D´Ale e Guiña. Era dos nossos. Trazia no âmago a garra farrapa. E dá-lhe pero que si, pero que no.
No primeiro jogo da decisão da Recopa, por via das dúvidas, uma das gurias trouxe um par de pantufas vermelhas para o argentino, mas a derrota foi inevitável e o colorado perdeu de um a zero.
– Esse rascunho do Che Guevara é pé-frio – comentou a guria que trouxe as pantufas.
Nos jogos da volta da Copa do Brasil e da Recopa, o argentino foi paramentado com um gorro de lã, um pala, uma bandeira sobre os ombros, um par de meias e, logicamente, as pantufas. Claro, era o mais próximo da lareira. Volta e meia alguém alcançava um copo de quentão para aquecer o hermano. Mas as tragédias das decisões estavam anunciadas. E eram inevitáveis. E sempre alguém comentava: esse castelhano é pé-frio.
Para o Gre-Nal comemorativo dos 100 anos do clássico, o castelhano, constrangido, não deu as caras. Telefonou avisando que sequer assistiria ao jogo. Iria passear pelo Calçadão e pelo Parque Itaimbé com uma cuia cevada para o amargo e uma viola. Iria dedilhar umas milongas para matar a saudade de sua amada Argentina com músicas de Os Chalchaleros e Atahualpa Yupanqui. A turma sentiu-se aliviada.
Como vimos, não sabemos quais foram os motivos de derrota do Inter no Gre-Nal dos 100 anos, se houve alguma influência extra-campo, mandinga de batuqueiro ou uma fogosa castelhana atrapalhando o desempenho dos nossos castelhanos. Mas, definitivamente, o argentino não era o culpado pelas derrotas do Inter.

domingo, 19 de julho de 2009

A casa de papel


A casa de papel é uma novela do argentino Carlos Maria Dominguez que vive em Montevidéu.
A narrativa é interessante porque o desfecho da biblioteca de um dos protagonistas é inusitado. Uma pessoa, Bluma Lennon, morre atropelada em uma esquina quando lia um poema. Pouco tempo após seu colega de universidade recebe um livro endereçado a Bluma com resquícios de cimento na capa.
Aí começa a busca de Joseph Conrad pelo remetente do livro e o porquê do cimento incrustado no exemplar de A linha da sombra.
Uma reflexão deve ser feita.
Como pode um aficionado por livros, que tomava banho gelado para não danificar com vapor a parte da biblioteca que estava no banheiro, transformá-los em uma casa de papel?
E outra pergunta deverá ser respondida pelo leitor. Qual o destino dos nossos livros? Da nossa biblioteca?
A leitura é fácil a prazerosa, as respostas nem tanto.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

No meu Cross Fox


Com mais de um milhão de acessos, Stefhany, uma adolescente de 17 anos do interior do Piauí, é sucesso no YouTube. Incentivada pela mãe, a garota de Inhuma produziu um vídeo com sua música mais popular. Tornou-se absoluta cantando “Eu sou Stefhnay” enquanto dirigia um Cross Fox emprestado pelas ruas de terra batida da cidade. “No meu Cross Fox/ eu vou sair/ vou dançar/ e me divertir”.
Essa guria adquiriu enorme sucesso no norte e nordeste brasileiros. A agenda de shows chega a marca de vinte e cinco mensais. Stefhany foi aclamada no Caldeirão do Huck. Dona Nety, a mãe, chegou no Caldeirão montada em um jegue e ambas saíram com um Cross Fox amarelo ofertado pela Volkswagen. O próximo passo será a aquisição de um ônibus para transportar seu staff nas turnês pelo Brasil afora... ou adentro.
Quantos dos nossos atuais, bem-sucedidos e badalados artistas iniciaram a carreira cantando um Cross Fox à moda antiga?
Um Fuscão preto feito de aço rodou pelas ruas desse país, mas o sucesso não acarretou em perenidade midiática para os autores. Hoje poucos se lembram do artista que interpretava a música e muito menos quem era a tão falada dama da noite que fumava e bebia sem parar.
Uma Brasília amarela que estava sempre de portas abertas, também encantou os jovens e crianças desse país, mas o sucesso do irreverente grupo de Guarulhos foi prematuramente interrompido por um trágico acidente de avião.
Uma jovem e angelical cantora veio de táxi porque estava com saudades e hoje faz enorme sucesso como cantora e apresentadora de programas globais. Chegou de táxi e está montada na grana.
Recentemente um sexagenário senhor completou 50 anos de incontestável sucesso e começou a carreira cantando um Calhambeque bi bi, embora as emoções sejam o seu maior legado. Precisa dizer algo mais? Não faço ideia que carro ele dirige hoje.
Julgando-se pela qualidade e padrão do carro que está iniciando a jovem Stefhany, podemos afirmar que, num curto prazo, a meteórica musa do YouTube terá uma veiculação internacional e sentirá saudades de seu modesto Cross Fox dirigindo uma Ferrari pelas avenidas da Cidade Maravilhosa.

sábado, 11 de julho de 2009

Obama não olhou...


Uma foto correu mundo no encontro de poderosos, pseudo-poderosos e candidatos a poderosos em L’Aquila, na Itália. Tudo por causa de uma suposta olhadela de Obama para o traseiro da representante brasileira que participava de um “gezinho”, o chamado Júnior 8.
A carioca Mayara cruza exuberante em frente os presidentes dos Estados Unidos e da França. Ambos olham para o rebolado da guria, posteriormente um vídeo “inocenta” o Barack, mas salienta a fisionomia de sarcasmo do marido de Carla Bruni. Convenhamos, a foto é reveladora dos dotes da beldade brasileira e dos olhos de águia dos dois presidentes.
Eu imagino o Sarkozy tirando o maior sarro cantando “Ela é cariocá, ela é cariocá...” e recebendo um beliscão da Carla. O Obama atracaria o “Tico-tico no fubá”. Um Tico-Tico só/ O Tico-Tico lá/ Está comendo/ Todo, todo, meu fubá/ Olha seu Nicolau... olhando para o Sarkozy. Claro que o presidente cantaria “Taico-taico”.
No Brasil a bunda está consagrada como preferência nacional. Ponto para nós, e eu como sul brasileiro estou incluído no topo dessa estatística. Esse dado é fato, basta observarmos as propagandas de cerveja, cigarros e seja lá o que for. Sempre tem um atraente e deslumbrante traseiro para chamar a atenção. E aí tem nome para tudo. Garota melão, melancia, moranguinho e uma salada de frutas completa. Tudo se resume em um minúsculo fio dental e umas superabundantes nádegas.
Nesses encontros de cúpula – cúpula bem entendido – sempre tem uma bunda para ser apreciada. Será que num jantar regado a “Château Lafite” o Obama não dá uma discreta olhadinha para o traseiro de Carla? E o Sarkozy seria mais discreto ao contemplar os atributos de Michele? Com relação ao Berlusconi não temos dúvidas...
Tenho algumas incertezas, dado o nosso padrão de beleza contemporâneo, se a Ângela Merkel, primeira-ministra da Alemanha, seria contemplada com um desses olhares matreiros.
Não vejo maldade nesses olhares, o que é belo deve ser admirado – e sem machismo nisso – todos gostamos de ser observados, por mais barrigudos, carecas e baixinho que sejamos. Imaginem um belo traseiro cruzando em nossa frente. É óbvio que temos que olhar.
Se o Obama não olhou... deveria ter olhado. Discretamente, claro.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Carta aberta ao povo vermelho e azul


O momento futebolístico que os gaúchos vivem é de extrema grandeza e profundas e palpitantes emoções. Nada será mais importante para os torcedores da dupla Gre-Nal do que os decisivos jogos nesse julho que nasce. Então, precisamos retomar alguns dados históricos.
Em 1930 o povo gaúcho se reuniu em torno de uma causa. Formou a Aliança Liberal para desmascarar uma eleição viciada. Juntamente com Minas Gerais e Paraíba, o Rio Grande do Sul sepultou a República Velha. Amarramos cavalos no obelisco. E isso foi uma façanha. E nessa heróica luta, Maragatos e Chimangos colocaram Getúlio Vargas na presidência do Brasil. Bom, o que veio depois a gente deixa por conta do Getúlio.
No início da década de 70, mais uma vez, os gaúchos reunidos num único sentimento desafiaram a seleção canarinho tricampeã no México. Num memorável jogo empataram e 3 com seleção sensação dos gramados do estádio Azteca. Com os galácticos da época: Gerson, Rivelino, Jairzinho, Tostão... tá faltando um... bah! Não lembro. Mas isso demonstra que os gaúchos unidos jamais serão vencidos.
Nessa quarta e quinta-feira os gaúchos terão um desafio contra mineiros e paulistas. A hombridade farrapa esta em jogo. Uma história estará em campo. Dentro dessas quatro linhas nós mostraremos toda a nossa valentia. Entrará em campo a memória de Flores da Cunha, Zeca Neto e Honório Lemes.
Assim, conclamo a todos os azuizinhos torcerem para o Internacional contra o Corinthians nessa quarta-feira. É imprescindível o pensamento positivo no objetivo da vitória.
E para sermos solidários, na quinta todos os colorados serão azuizinhos desde criancinha. UAI!!! “Cêbêsta sô!!! Júda redá ess trem quió!!!”.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

"I have a dream"


Um dos mais memoráveis discursos da história foi feito por Martin Luther King, “I have a dream”. Falava de paz e de que a convivência entre negros e brancos deveria ser fraterna. O discurso foi realizado no início da década de 60 do século passado para uma multidão de 200 mil pessoas. A partir de então todos nós tivemos um sonho quando queríamos falar de liberdade, paz e uma vida digna.
Há um século o Internacional nasceu para combater o racismo. Jovens queriam jogar futebol e fundaram um time onde qualquer pessoa poderia jogar independente de sua cor. Os jovens Poppe tinham um sonho.
Nos últimos anos os colorados não têm motivos para reclamar, a maior torcida do Sul do Brasil extravasou sua alegria em inúmeras conquistas: Libertadores, Mundial, Gauchão e Recopa. Mas nós queremos ser felizes para sempre. Incessantemente buscamos a felicidade em todos os jogos, em todas as decisões. Esse é o nosso sonho.
Em 2005 nos roubaram, vergonhosamente, uma estrela. E espero que no dia primeiro de julho deixem nossas estrelas brilharem em campo para reconquistá-la. Essa estrela está distante, foi em 1992 que a vimos pela última vez. E nós temos um encontro marcado com essa estrela. Nós não faltaremos a esse encontro. Nós ensaiaremos passos de chamamé, cevaremos um chimarrão, passearemos pelos diversos caminhos da Redenção e veremos um pôr do sol que a deixará ainda mais brilhosa.
Vamo! Vamo! Inter!!! Todos os colorados sonham com esse título. Sonhemos todos juntos que o sonho vira realidade. Ontem eu sonhei que várias crianças brincavam, em rodas de ciranda, vestidas com camisetas vermelhas, pelas ruas e calçadas desse Brasil. Comemoravam o título de campeão do Sport Club Internacional.
Meu coração é vermelho, mas brilha como as estrelas no céu. E como diz a letra da música: tudo é garantido após a rosa vermelhar, tudo é garantido após o sol vermelhecer.
Ou melhor: tudo é garantido após a estrela vermelhar.
Eu não sei quais serão as próximas conquistas do Internacional. Eu não sei quais serão as nossas estrelas no peito. Mas uma coisa eu posso afirmar: eu tenho um sonho.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Humildade de maranhense


Usando a tribuna o senador José Sarney discursou por mais de 30 minutos. Um amontoado de lamúrias acerca das idas e vindas da crise no senado, o encordoado de denúncias sobre nomeações de parentes, atos secretos, horas-extras pagas indevidamente, nomeação a rodo de diretores, etc, etc, etc...
O senador discorreu sobre sua longa ficha de relevantes serviços prestados à nação. Eximiu-se de qualquer culpa sobre os atos secretos afirmando que a crise é do senado e não dele.
Chegou a ser comovente ver uma figura daquela estatura, uma espécie de ex-tudo na política brasileira, rogando aos céus, com as mãos postas e espalmadas sobre o peito, sua honestidade ou seus pequenos erros, pois todos nós cometemos pequenos erros. É uma injustiça do país julgar um homem como eu. Confesso, quase fui às lágrimas.
Nomear um neto e uma sobrinha – que mora no Mato Grosso do Sul – para ser assistente parlamentar são pequenos erros, sem dúvidas. Mas para usar uma metáfora do futebol, ao gosto do presidente Lula, várias pequenas faltas fazem jus a um cartão amarelo. E o conjunto da obra um vermelho. Mas expulsar um atleta, nesse jogo que dura oito anos, é uma tremenda dificuldade. Quantos são os pequenos erros que estão acumulados nesse emaranhado – ou seria maranhado – de desmandos administrativos e políticos na trajetória desse senador do Maranhão?
Brasileiros e brasileiras. Era assim que o então presidente da república José Sarney se dirigia a povo em seus pronunciamentos. Numa época em que a inflação estava na casa dos 80% ao mês e o salário mínimo era de 40 dólares. Mas esses dados não estavam no seu arrazoado de relevantes serviços. Naqueles anos amargos havia 300 picaretas no Congresso e um fervoroso líder da oposição que afirmou que o Presidente da Nova República não faria a reforma agrária porque ele era um grileiro do nordeste. Mas os tempos mudam e o fervoroso líder da oposição se elegeu presidente e, do outro lado do mundo, afirmou que "Sarney tem história no Brasil suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum". O problema do Brasil é justamente esse: Como são tratadas as pessoas comuns.
O sonho de todo brasileiro é ser tratado como senador, um deputado. De minha parte abro mão dos atos secretos. A mim, bastaria ser tratado como um neto de senador.
Há alguns dias um ministro falou que tinha costas de crocodilo e arrogância de gaúcho, concluo que o atual presidente do senado tem lágrimas de crocodilo e humildade de maranhense.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

O colecionador de cuias


1º lugar ALPAS XXI (III concurso letras premiadas contos)

Parte I – Athos Ronaldo Miralha da Cunha

A chaleira preta chiou na chapa. A água estava pronta para o mate. Torquato Filho pegou uma das tantas cuias do armário, um pacote de erva buena lá da fronteira, uma envelhecida bomba de alpaca e começou o preparo do chimarrão. Uma rotina que jamais abrira mão. Matear no arrebol de todos os dias diante do armário com sua coleção de cuias. No inverno, aquecido pelo fogão à lenha, e no verão, refrescado por uma leve brisa do sul.
A bomba e, principalmente, a cuia eram heranças inestimáveis do velho Torquato.
Saboreando o amargo naquela manhã de primavera Torquato sentia, com olhos de saudade e um coração palpitante de recordações, os anos que ficaram para trás, suas lidas de filho de peão, peão e, posteriormente, bolicheiro de beira de estrada.
Passavam pela sua mente, diante da cuia e da chaleira na humilde cozinha de sua residência, lembranças de um tempo remoto. Rememorações dos tempos de guri. Então, pareceu tão presente e ao alcance de sua mão o primeiro mate que o velho Torquato oferecia ao filho. Nunca esquecera aquele gesto e o sorriso do velho. Era o reconhecimento do pai, ao piá que se tornara um rapazote.
O primeiro chimarrão entre pai e filho tinha um sabor de cumplicidade. Não havia necessidade de prosa, bastava que um servisse o mate do outro. E, assim, pai e filho tornaram-se companheiros. Foi numa madrugada de um rigoroso e longínquo inverno, tão distante que não saberia mais precisar, só tinha uma certeza, fazia muito tempo. E muito frio.
Depois daquele primeiro mate na parceria do velho, a cuia sempre esteve bem guardada e cuidada no armário da cozinha. A primeira cuia da coleção de Torquato. A cuia que foi parceira de muitos anos com o Velho nas auroras de tantos invernos que, hoje, não existem mais.
E, com essa mesma cuia o bolicheiro sorveu os primeiros mates dessa primavera pampeana. Solito, na cozinha, se corroia em reminiscências.
Logo, Joana estaria em pé lidando com os afazeres domésticos e preparando o almoço para Torquato e os filhos. E, certamente, uma panelada de ambrosia para o dia das crianças.
Com os olhos postos na coxilha verde da cuia, Torquato sorveu o derradeiro mate no alvorecer de seu rancho. Colocou mais lenha no fogão, fechou as portas do armário com suas incontáveis cuias e se foi arrastando as alpargatas rumo à peça da frente de sua casa, onde tinha o seu modesto comércio.
Torquato abre as portas do bolicho e respira o ar da manhã.
Nos galhos da corticeira alguns cardeais, em algazarra, davam um toque de alegria ao crepúsculo daquele outubro florido.

Parte II – Tânia Lopes

Retomou as lembranças de outras cuias em sua vida., como a primeira visita que fizera ao chefe da subestação de João Arregui, quando os trens ainda passavam por lá, carregados de gente. Quer dizer, a bem da verdade, os dois vagões primeiros, de primeira classe, um outro, o vagão refeitório, depois o vagão de segunda, seguia o de carga, e o último de bosta, que ia para ser beneficiada e virar adubo numa estação mais adiante.
Na verdade dissera, ao se apresentar para o homem de quepe e uniforme da VFRGS, que passara para oferecer à família seus préstimos de bolicheiro, mas as segundas intenções era conhecer as filhas do homem...
Diziam que eram umas moças mui lindas e guapas. Pois foi justo Joana que lhe oferecera um mate novo, cheiroso, com uma pequena flor de laranjeira no topete da erva.
– Desculpa, moço! – dissera o homem arreliado – Já falei que não há “percisão” de enfeitar mate... Mas essas minhas filhas são inventadeiras!!
– Tá bonito o mate, seu, não se apoquente! – falou amistoso – A contragosto viu que seu rosto esquentara e esperara que não se notasse que ficara rubro de vergonha ou algo más, que brotara ali mesmo, se confundindo com o calor do mate baixando pelas entranhas... Num relance viu que a moça se afastava atrapalhada, segurando o riso, corada também.
Fazia tanto tempo e ainda lhe dava gosto lembrar!...
Lembrou da velha Talita, sua tia que o criara, já que a mãe morrera de parto. Uma vez que fora da cidade que a tia lhe trouxera uma cuia enfeitada com prata. Coisa fina. Estava ali, lado a lado com outra cuia velha que fora do pai, que rachara de tanto uso. Engraçado, só agora, homem feito se dera conta que bem que os dois poderiam ter alguma coisa a mais do que o parentesco de cunhados!
Perdido nas suas lembranças foi abrindo as tulhas de feijão, milho, arroz e erva. O odor conhecido lhe fazia abrir as narinas para melhor apreciar. Abriu a queijeira de tela, virou um por um os queijos, num costume antigo que aprendera com sua tia. – Precisava comprar mais alguns, pois nas carreiras de domingo vendia talhadas de queijo com marmelada, salame ou mortadela, conforme o gosto dos fregueses. – pensou.
Relanceou de novo o olhar para a carreteira. Uma leve polvadeira anunciava que vinha alguém.
Era meio perigoso morar quase na beira da estrada, sabia disso. Havia passantes do bem e do mal. Vez por outra algum mal-encarado apeava, largava o cavalo pra pastar ou, beber água na tina que existia para esse fim. Um banco tosco debaixo do cinamomo que mais parecia uma sombrinha, convidava os viajantes para uma parada naquele refrigério natural, tal era o compacto das folhas da árvore.
Aos poucos viu o vulto que ora aparecia, ora baixava, conforme a sinuosidade do terreno.

Parte III – Antônio Cândido de Azambuja Ribeiro

Firmou a vista, tentando identificar o cavaleiro, mas este ainda vinha longe, o que impossibilitava a pronta identificação. Por enquanto, era só um vulto e um rastro fino de poeira. Voltou ao interior da venda e novamente se ocupou de seus afazeres e lembranças. Destas, aflorou-lhe à mente, mais limpa que outras tantas que ordinariamente desfilavam nos seus amanheceres, a passagem, pelo bolicho, de um castelhano melenudo, corrido da polícia. Homem de feições rudes, barba negra, gestos largos e fala pausada. Por coincidência, Ramón, o dito fugitivo, dera com os costados no bolicho num morno amanhecer de primavera. Viera do outro lado, pelo Passo, para homiziar-se em terras brasileiras, na esperança de se empregar como peão numa das estâncias de “acá”. No bolicho, relembra Torquato, o castelhano pediu uma gasosa, um pão e duas latas de sardinha, que devorou como se não comesse há dias. Tendo enchido o pandulho, pitou, com tragadas vagarosas e profundas, um palheiro feito de um fumo especial, um amarelinho de sabor suave, de cujo rolo pedira um naco ao bolicheiro. Enquanto fumava, da porta do bolicho, mirava o horizonte aberto, como se mirasse a pátria saudosa e distante ou o próprio e incerto futuro.
Depois, sem que fosse provocado, contou a Torquato a sua história. Ele, seus pais e uma irmã eram agregados em uma estância correntina. Um dia, lavando roupa no açude, “su hermanita”, jovem na flor dos 15 anos, foi estuprada pelo filho do estancieiro. Não satisfeito, o estuprador ameaçou de morte a pequena Dalila e exigiu que, em dias por ele determinados, ela estivesse à sua espera num capão de mato, próximo da sede da estância. Dalila entrou em profunda depressão e, só ao custo de muita pressão familiar, acabou revelando à mãe o que acontecera. E Ramón parece se perder nas lembranças:
“Madrecita dije a mi padre lo que sucedió con Dalila, e el viejo – carajo!, hombre que honraba sus cojones –, entregó su alma a El Malo e, con sus fierros de capar toros, sacó fuera las pelotitas de aquél hijo de uma gran puta. E, con el cuero, ha hecho una capa para un chico mate, uma chica cuia como ustedes dicen acá, en la cuál mi hermana mateaba su yerba dulce. Iracundo con lo que aconteció con su hijo, el estanciero, hombre rudo e de malos princípios, sin preguntar a mi Tata suyas razones, con un bandalaje de flojos, mató los viejos, sin los haber dado oportunidad de explicación. Dalila, que todo presenció, desesperada, com miedo de que la atacasen, se metió en uno hondo bañadero que había acerca del rancho e se murió ahogada. Solo resté yo, que, en la ocasión, estaba fuera, a servicio del propio estanciero. Después, pusieron fuego em nuestra casa. De todo, restó la cuia, con la cuál Dalila mateaba cuando ellos fueron atacados. Ella, la cuia, yo la encontré por acaso cuando volví de viaje. Después, vecinos contaron lo que se había sucedido e traté de rajar del territorio, pues el estanciero hablara que también me mataría, en mi retorno (para que non restase ninguna posibilidad de descendencia de nuestra raza). Pero, antes de huir, maté el desalmado e, dende entonces, matrero, tengo vagado mundo afuera, escondiéndome de la gendarmería. Es esta, en dos palabras, mi triste historia, paisano. Pero, mira, bolichero, yo no soy malevo como dicen los gendarmes e para probarlo, dejaré con usted, para que de mi te recuerdes siempre, com mis agradecimientos por tu generosidad, la cuia, encapada com el cuero de los cojones del hijo de una puta que empezó esta disgracia.”
Dizendo isso, Ramón, sem conseguir disfarçar a emoção que sentia, foi ao cavalo e, de uma surrada mala de garupa, tirou a cuia, entregando-a a Torquato. É a mais estranha das peças da sua coleção. Nela, o bolicheiro jamais cevou um mate. Um pouco por asco, um pouco por respeito à memória de Ramón (morto, dois dias depois de sua passagem pelo bolicho, por um conterrâneo seu, surgido ninguém sabe de onde, em mal explicado entrevero, num jogo de tava).

Parte IV – Orlando Fonseca

Torquato sentiu uma leve tontura ao pôr-se de pé. O cavaleiro, agora, tinha semblante e não se tratava de nenhum desconhecido, muito menos maleva. Reconheceu o velho pala, o chapéu de aba levantada e a barba grisalha. Era o próprio velho Torquato. Seria simplesmente uma alegria, não tivesse seu pai falecido há dez anos. O vulto desceu do cavalo, à sua frente, dirigiu-se para o interior da casa, e voltou de lá com a cuia que o Ramón lhe havia dado. Com o mesmo e antigo rosto duro, de muitas lides, de muitas invernias, a tez morena tostada pelo sol do verão na campanha, disse-lhe que era uma desonra ter aquele traste junto com lembranças tão boas e dignas da família. Dirigiu-se para os fundos da casa, depois voltou, entregando-lhe uma cuia, também já curtida dos anos de uso, e disse-lhe que aquela sim, era um emblema digno de guardar como um tesouro. Nela estava guardado um segredo, que no devido tempo se esclareceria. Levantando o braço, como num “te’a volta”, tornou a montar e retomou a estrada por onde viera. Torquato Filho, boquiaberto, ficou com o olhar fixo no horizonte vendo o fantasma de seu velho sumir no horizonte. Por ter ficado tanto tempo com os olhos arregalados, sentiu-os secos, com uma ardência insuportável, e percebeu que escorriam lágrimas pelas suas faces. Voltou a sentar, com a mesma tontura. Joana, que viera pegar um pouco de canela em rama no bolicho, viu-o sentado e fora de seu estado normal, acudiu-lhe, trazendo um copo d’água ao que ele recusou, pois queria apenas mais água quente para o chimarrão. A cuia que tinha na mão era a mesma que usava há tempos, e tinha certeza que o pai lhe dera outra. Não disse nada à companheira.
– Tem certeza de que tá tudo bem, meu velho? Não quer o remedinho que o...
– Mas bem capaz que eu vou engolir aquelas porcarias do doutorzinho da mula ruça. Já disse, minha velha, só quero a água quente; aproveita e já encilha este mate que tá um pouco lavado.
Joana retirou-se para o interior da casa, voltando em seguida com a água e o mate. Torquato estava intrigado, pois no mesmo lugar que avistara o cavaleiro chegando, havia uma polvadeira maior, indicando que se aproximava uma charrete, ou coisa parecida. Mais próximo, reconheceu tratar-se de sua velha tia Talita, conduzida por um piazote, filho de um agregado que cuidava da fazenda, ou do que restara dela. Amparada pelo braço de Torquato, a velha apeou com muita dificuldade. Assim que se sentiu firme no chão, fez o Torquato abaixar-se para que ela lhe desse muitos beijos no rosto, como era seu costume. Disse-lhe que tinha pressa, pois trouxera-lhe um presente. Mais um, pensou Torquato. Mas este tem um significado muito especial, assegurava-lhe a velha senhora, entregando-lhe o embrulho.
Joana, vendo o movimento à frente do bolicho, veio conferir quem chegara. Sabendo que a Tia Talita não lhe devotava muito carinho, com ciúmes do seu “filhinho”, apenas fez as honras de praxe, informou que as crianças estavam na escola, que a mais velha já andava de namorico, enfim, que as coisas estavam tudo em seu lugar. Perguntou como estava a Tia, e a gota ainda incomodando? Tinha melhorado da espinhela caída? Depois das lamúrias de sempre, voltou para o interior da casa e suas tarefas.
Neste ínterim, Torquato examinara o pacote, e, surpreso, viu aparecer em suas mãos a cuia que o vulto de seu pai havia lhe entregue alguns minutos antes. E ainda ouviu a Tia dizer que tinha um segredo ali. Que, estando ela já mais para o lado de lá, do que do de cá, sentia o dever de anunciar-lhe o que havia prometido ao velho Torquato no seu leito de morte. Ele ainda pensou que deveria contar à Tia Talita que o próprio pai tinha estado ali, há pouco, falando a mesma coisa. No entanto calou-se, porque a vertigem parecia voltar, esforçando-se para não adivinhar o que poderia haver de tão especial naquela cuia, que esperara tantos anos para se manifestar. Gritou para Joana que trouxesse o copo com água, e apurou o ouvido para apreciar o segredo que estava prestes a se revelar.

Parte Final – Pedro Brum Santos

Quanto mais eu rezo mais assombração me aparece. A sentença era da verve do velho Torquato, sempre que as coisas saiam-lhe atravessadas. Agora aqui está o filho bolicheiro, depois de um dia atribulado por visitas e presentes de outro mundo, enquanto Joana dorme a sono solto. Aqui está este filho, a pensar no pai, nos seus trejeitos, nos serões das auroras, quando as longas chimarreadas principiavam o dia muito antes de o sol surgir. Torquato, o filho, não saberá dizer se foi em sonho ou em vigília que o velho voltou a aparecer-lhe durante a noite. Falava-lhe com a mesma voz pausada daqueles chimarrões matinais, a mesma pose serena diante da cuia. Este era seu pai, figura inconfundível, perene, permanente. A cuia, como um ponto fixo cochilando no invólucro da mão rude descansada sobre a perna. Assim se acostumara a vê-lo e a senti-lo pela mocidade afora. Um conselho ali, um causo aqui, um plano acolá. Este era o pai companheiro que mais admirara e cuja ausência de vez em quando ainda lhe doía forte: a sombra de um rosto, o vulto da cuia relampeando do brilho das lavaredas e uma voz falando do fundo do escuro.
Primeiro foi um ruído no canto do quarto, perto da porta. Parecia um arrastar de cadeira. Desconfiado, Torquato espichou o olho. Em princípio não viu nada. Só quando a voz irrompeu da noite é que percebeu o vulto do pai. Começou como uma imagem difusa, sem contorno e, aos poucos, virou algo que se aproximava muito da imagem que guardara dos chimarrões das madrugadas. Passou-lhe rapidamente pela cabeça que o barulho teria despertado Joana. Mas logo esqueceu da mulher, deixando-a abandonada ao ressonar profundo que percebeu como uma réstia de realidade que dormitava a seu lado. Naquele momento, chegou a firmar convicção de que não estava sonhando. Logo mais, porém, enquanto, entre uma cuia e outra do chimarrão solitário da manhã, repassava as aventuras da trajetória insone, já não tinha mais certeza se, quando seus sentidos deram conta da figura do pai, ele, de fato, estava acordado ou tudo aquilo já era parte do agitado sonho que o perseguiu até a hora do despertar.
Sorveu fundo mais um gole de mate, mexeu com a bomba e ficou olhando a cuia que aquecia sua mão na hora fresca da manhã. A algazarra dos passarinhos não lhe desviava o curso do pensamento. Do meio da noite, seu pai lhe dizia que pegasse a cuia, aquela que lhe entregara no dia anterior e, na hora-morta de depois do meio-dia, quando a casa toda estivesse no recolhimento da sesta, fosse até o córrego d’água que passava no potreiro dos fundos. Devia, então, seguir em direção à nascente até o campo do Loretto. Que parasse no justo ponto onde, ao pé de um cerrinho, o córrego é mais largo. Que se chegasse à borda dessa pequena lagoa, pelo lado do cerro, mergulhasse a cuia e a deixasse assim por um tempo, segurando firme. A lagoa começaria a ferver toda. Não se assustasse e ficasse preparado, pois do meio da água surgiria uma mulher formosa, uma morena em trajes de rainha, com uma reluzente pedra vermelha a adornar-lhe a testa. Que lhe desse a mão e seguisse com ela, tendo apenas o cuidado de jamais lhe fitar nos olhos. Isso era tudo o que podia lhe dizer. E não esquecesse: o segredo estava em não olhar, um instante sequer, nos olhos da princesa.
Torquato pede mais água quente para Joana que, como de hábito, a esta hora, está envolvida com as lidas da cozinha. Por precaução ou recato, diante da mulher, prefere continuar com o silêncio sobre esse assunto de aparições e segredos de vidas passadas. Com os olhos acusando falta de sono, olha as prateleiras ao redor. A não ser por alguma alma desgarrada, esta é a hora morta do movimento. Passa-lhe pela cabeça que precisa ir à cidade. Os estoques de erva e cachaça não chegam até sábado. Esfrega a barba por fazer, no instante em que Joana aparece com a chaleira fumegando e a deposita ao lado do banco de três pernas, perto da porta da frente, onde o bolicheiro, amoitado, entre um matear e outro, observa em silêncio a paisagem recortada diante de si.
A água quente faz espuma na cuia cheia e Torquato sorve um trago longo e lento, que engole também devagar, aos poucos, sentindo o calor encher-lhe o peito e, logo abaixo, repousar macio no estômago. Um repuxão na bexiga lhe lembra que já tomou mate além da conta. Diurético, meu filho, faz bem pros rins. O ricto em sua boca trai a lembrança de tia Talita alcançando-lhe o mate encilhado e a água quente. Revê-se gurizote, ouvindo o pai contar sobre a salamanca do cerro, a mulher encantada numa lagartixa que tinha uma pedra vermelha na cabeça. Pobre do cristão a quem o encanto se desfizesse. A mulher tinha parte com o diabo e quem pegasse seu quebranto, estaria destinado a vaguear como um condenado até o fim de seus dias. O velho Torquato costumava dizer que muitos desses que encontramos pelos corredores, sujeitos que não dizem coisa com coisa, que andam a esmo, sem eira nem beira, muitos desses são quebrantados da tinhosa.
O bolicheiro enche mais um mate. As imagens de sua noite agitada vão e voltam. Num esforço de concentração, tenta ordená-las. Pelo que se lembra, primeiro foi aquela estranha visita do pai, que não sabe dizer se sonho ou realidade. O pai, com seu jeito manso de dizer as coisas, protegido pela meia-sombra igual como quando chimarreavam de madrugada, o pai associando aquela estranha história de mulher encantada com o segredo da cuia. A mesma cuia que, no dia anterior, ele, Torquato Filho, recebera como um presente retardado de seu velho, já morto há tantos anos, com aquela estranha indicação de que guardava um oculto que no devido tempo se esclareceria.
O mistério seria esse mesmo – seguir essa mulher que, estava visto, parecia ser a própria salamanca do cerro? E por qual motivo era dado a ele desvendar o sortilégio? Seu gosto pelas cuias teria guiado o espírito do pai? E se a história da princesa fosse um engana trouxa, algo para botá-lo a perder e condená-lo a vaguear pelo mundo? As conjecturas tomam a mente de Torquato, turvam-lhe o pensamento. Outra vez se perde no caminho de ordenar as imagens da noite. Pedaços do sonho que tivera ao amanhecer lambem seus sentidos como uma fagulha à toa, trazida pelo vento, que bate e se vai. Ao piscar imperceptível de seus olhos cansados, parece sentir o cavalgar da princesa a aninhar-se sobre seu sexo e a roçar os seios rijos, empinados, ao alcance de sua boca sôfrega – mas esses não são os seios de Joana, da jovenzinha, filha do chefe da subestação? A bexiga cheia e uma leve excitação trazem Torquato de volta à realidade. Há batidas de panela na cozinha. O bolicheiro larga a cuia. Uma vertigem discreta provoca um esforço para aprumar-se no banco. Parado, procura o ritmo certo da respiração. Espera a tontura passar e levanta-se. Compõe a garganta e sai a passo lento, contorna a casa. O ar puro de fora lhe revigora os músculos. A bexiga aperta. Ouve o sonoro canto do sabiá e apressa o passo para mijar escondido, atrás do arvoredo dos fundos.
O mijo retumba na terra fofa e respinga-lhe as alpercatas. Mijo gordo, espumante, força d’água caindo livre de comportas abertas. O bolicheiro olha para os pés e recua rápido, para não se molhar na poça que escorre em sua direção. O pensamento, porém, continua longe. O que vê, na verdade, é a sanga indicada pelo pai. Percorre-a mentalmente em direção à divisa do Loretto. Enquanto fecha a braguilha, com rapidez seu pensamento entra nas terras limítrofes e chega à lagoa do pé do cerro. A lembrança mais clara que lhe ocorre vem da época de enchente, quando a água transborda e leva tudo por diante, botando o corguinho pra fora das caixas por horas a fio. Ali, naquele lagoão do Loretto, se esconderia, então, uma mulher misteriosa? E aonde ela levaria? Cabedal escondido? Sorte grande? Ou desgraceira, desengano, doidice?
A vertigem ameaça outra vez. Torquato respira fundo, escora-se numa árvore. Logo adiante, uma fruta despenca do alto e esborracha-se no chão. O ruído de coisa partida, o som surdo de fratura exposta e a revoada barulhenta do bando de periquitos que, com o barulho, dispara sua marcha nervosa na direção do corredor, trazem-no de volta à vida corrente. A gurizada já deve estar de pé. Daqui a pouco começa o movimento no bolicho. Torquato apressa o passo. Sente-se mais confiante. Tem um forte desejo de afastar a má tenção do fantasma do pai, da herança da cuia misteriosa, do dito segredo da lagoa, enfim, sente que precisa controlar esse enleio que lhe trança os passos desde que essas visitas estranhas começaram a lhe aparecer.
Visitas estranhas? Nesse ponto, quando já se aproxima de casa, um cutuco lhe assalta. E se tudo não passasse de um feitiço instalado entre suas cuias? Sim, um feitiço trazido por aquele estradeiro que lhe bateu os costados antes que o fantasma de seu falecido pai e a presença estranha da velha Talita se achegassem para lhe atrapalhar as idéias! O feitiço, está visto, foi instalado por aquela estranha peça que o castelhano Ramón lhe presenteara! Ouve de novo as palavras do infeliz, como se ele estivesse agora, ali, ao alcance da mão – dava-lhe a cuia encapada com el cuero de los cojones del hijo de una puta que empezó esta disgracia.
No cruzamento dos fios é que se fortalece a corda. Torquato juntou rapidamente os tentos soltos. Veio-lhe à mente que seu pai, na visita do dia anterior, quando lhe entregou a dita cuia do segredo, havia se referido à doação do castelhano. O velho dissera claramente que era uma vergonha ter um traste daqueles entre as lembranças familiares. A mensagem paterna bem que poderia significar isso: um aviso, um alerta, algo para lhe chamar a atenção sobre um perigo instalado justamente ali, bem no coração de sua casa, entre sua coleção de cuias. O castelhano poderia ter sido o portador do feitiço. Daí esse rolo todo de mulher misteriosa, salamanca do cerro ou seja lá quem fosse a criatura tentadora. O pai bem que poderia estar querendo lhe dar esse aviso e, sabe lá Deus, não fora embaralhado pelos espíritos do mal. Como não tinha dado por isso antes?
Torquato chega à frente do bolicho e pára de novo. Levanta a cabeça e avista Nico Rengo no corredor. Então, num passo rápido, resolve examinar as cuias antes da chegada do primeiro freguês. Segue reto para a cozinha onde as crianças tomam café. Dá a bênção e abre o armário das cuias. Um tremor percorre-lhe a espinha: ali estão, lado a lado, como Deus e o diabo, como o direito e o avesso de seu destino, os dois objetos: o que lhe fora recomendado pelo pai e o presente do castelhano. Cerra as portas a segura-se no armário. A vertigem ameaça de novo. Desse jeito acabará tendo que tomar o remedinho do doutor de bosta. Joana entra na cozinha e avisa-lhe que tem gente. Torquato grunhe e, antes de deixar a peça, ainda se pergunta se, de fato, irá se decidir por uma das cuias ou se jogará as duas para o quinto dos infernos. Apruma o passo, compõe o peito e segue para tras do balcão.
– Bom dia seu Nico, como le passa, quéqui manda então?