domingo, 1 de março de 2009

A ditabranda

Quando menos se espera alguém abre um armário e nos coloca em estado estupefação. E aquela velha indignação adormecida desponta no horizonte. Nesse sentido sou agradecido à Folha ou Falha. Sei lá.
Há alguns dias, em editorial, a Folha de São Paulo insultou a memória de todos aqueles que lutaram, e muitos perderam a vida, pela redemocratização do Brasil. Um editorial arrogante, pois, inclusive, tiveram a audácia de usar um neologismo ditabranda para reduzir as conseqüências da ditadura militar no período de 1964 a 1985. Uma palavra sintetiza todo esse desproposito da Folha de São Paulo: lamentável!
Quem de nós não conhece um companheiro ou filho ou neto de um bravo brasileiro descendente dos anos de chumbo. Quem não conhece os relatos dos cárceres da ditadura. Renegamos a morte de Lamarca, Marighela, Fiel Filho e um sem fim de lutadores.
O editorial da Folha de São Paulo soa como um deboche, um escárnio para quem leu minimamente qualquer livro desse período. Daqui a algum tempo teremos cotas para as ditaduras, ou classificações: a ditalíquida, ditamole, ditabranda e a ditadura. Conforme o número de mortes e desaparecidos serão enquadrados em cada categoria. Fico imaginado uma reunião de ex-ditadores: a minha ditabranda só assassinou 5 mil guerrilheiros. A tua matou muito mais. Mas, mesmo assim, eu sou teu fã.
Se não fosse lúgubre seria hilário. Então, meus caros, escolham a sua dita.
É vergonhoso para quem se diz humano e racional.
Isso é conseqüência da falta de coragem do governo em abrir os arquivos da ditadura e externar suas barbáries e colocar em juízo os repressores e torturadores. Falta para o governo do companheiro uma gana missioneira dentro do peito.
No Brasil não temos punidos. Mas temos benesses para quem provar que foi perseguido, preso e torturado. Como se uma pensão sepultasse as seqüelas dos cárceres e do ódio dos torturadores. Até hoje tem brasileiros que não dormem porque estão sempre na expectativa de uma botina na porta e um fuzil na cabeça.
O Brasil, ao contrário de outros países da América Latina, recusa-se abrir esses arquivos. Não me surpreenderia se num futuro estaremos dando vivas ao general Medice. A ditadura militar brasileira ainda está no subsolo dos bem-guardados arquivos e longe dos livros de história. Esse silêncio todo me atordoa – verso de Chico Buarque – Cálice.
Viva a ditabranda – e cale-se – nossas cicatrizes não serão mais as mesmas.

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