Cetembrino
Goulart Tavares – conhecido como CTG – era um dos melhores cavaleiros em uma
cancha reta. Mas carregava um estranho nome: Cetembrino com C. O velho Tibúrcio
Tavares – o TT – não teve a intenção de que o filho tivesse a alcunha CTG, mas
foi intencional o C no nome do pirralho para formar a sigla. Afinal, TT era o
eterno patrão do CTG Galo da Fronteira. E o guri também era galo. Um galo
parido, às pressas, na sala do CTG num 20 de setembro de 20 anos atrás. Não se
conhecia outro Cetembrino em toda a pampa. No povoado era, apenas o CTG, o
melhor jóquei numa cancha reta.
O
rapazola chegou faceiro como ganso novo em taipa de açude e, devidamente,
paramentado para as carreiras. O lenço vermelho – marca registrada do maragato
peleador e pé de valsa –, esvoaçava com o vento sul. Montou no baio e aguardou a largada.
O
povo estava numa pequena arquibancada e esparramado ao longo dos alambrados da
cancha. Mas Cetembrino – naquele domingo de inverno ensolarado – correria com o
pensamento voltado para uma prenda faceira que estava na plateia. Uma prenda que viera lá dos Rincão das
Cutias. Uma guria para quem o CTG estava arrastando as asas. O interesse de
Cetembrino pela prenda começou após um xote figurado no baile de abertura dos
festejos do aniversário do povoado no CTG Galo da Fronteira.
Seria
para a Valquirinha que Cetembrino ofereceria a vitória em mais uma cancha reta.
Os
parelheiros estavam na raia. Ao seu lado, Pablo Manolo um castelhano que viera
do Uruguai para essa carreira especial. Chegou com pose de galo, ar vitorioso e
bombeando a Valquirinha. Essa atitude petulante do intruso fez ferver o sangue
de Cetembrino.
–
Um charrua metido a besta. E que vai voltar para casa com o rabo no meio das
pernas – comentou Cetembrino para um amigo momentos antes da largada.
Explodiu
um tiro de garrucha e foi dada a largada. E uma nuvem de poeira levantou das
patas dos cavalos. Bateram orelhas até meia cancha. Aos berros de bamo cavalo os contendores vislumbravam
a fita de chegada.
Na
plateia Valquirinha sorria e Tibúrcio Tavares sério como um capincho.
Cancha reta
Tânia Lopes – capítulo II
O pai do rapaz, como bom gaúcho, olhava e, por entre a fumaça do
palheiro, media Valquirinha, sabedor que ela era do tal cambicho do filho. Não
lhe parecia que fosse uma mulher adequada para o seu único herdeiro. Precisava
de uma mulher séria, de família distinta e de linhagem de boas parideiras.
Não se sabia afinal a que família pertencia essa moça abusada que estava
ali, no entrevero, no meio dos homens. De onde estava não lhe via a cara,
apenas o cascatear da risada com a outra que a acompanhava. Chamava a atenção
dos machos, que, para aparecer, gritavam alto apostando num ou noutro cavalo,
ou falando, elogiando ou fazendo troça dos atributos dos jóqueis. Ela, de blusa
encarnada e saia floreada, mais parecia uma artista de borlantim – constatou o
homem. Ademais, seu corpo despilchado de peito e bunda não lhe daria os netos
como sonhava. Precisava no mínimo uns três netos para cuidar as suas três fazendas
recém compradas.
Pelo menos essa era baixa, sim, único atributo que lhe dava vantagem.
Para o filho não fazer má figura ao lado, não podia ser muito grande nem alta.
Lembrava o velho Tibúrcio, a vida lhe pregara uma peça quando ao nascer
CTG lhe levara a mulher, franzina como essa. Não podia deixar o filho cair na
mesma esparrela... Lembrava bem, o parto difícil, antes da hora, consumira a
coitada sem dar tempo de levá-la a algum lugar com mais recursos. Fora atendida
por uma parteira velha, que mal enxergava e nem que enxergasse poderia conter a
hemorragia que ocorreu após o parto.
Ele ficara com o guri mirrado que criara guaxo com ajuda de uma velha
uruguaia que servia também para lhe fazer um puchero e lavar as fraldas e os
cueiros do guri. Assim sobrevivera o manhoso e crescera pouco, ao ponto de ter
que vestir um colete com chumbos para chegar até a balança da corrida com 50
quilos. Quem ganhasse ou perdesse após a corrida, tinha como era de praxe, se
pesar novamente. Coisas comuns nas carreiradas da vida! Um tira-teima que nem
precisava, pois o espírito ético dos contendores não deixava dúvidas.
Saiu dos seus devaneios o homem ainda teso, na fortaleza dos seus
sessenta e poucos anos, quando a moça em questão olhou pra trás, abriu a boca
vermelha de admiração e lhe encarou com firmeza fazendo acordar seus sentidos
de macho há tanto tempo adormecido, que se esquecendo da situação ousou pensar.
– Não posso perder para meu filho esta carreira!
Cancha reta
Vitor Biasoli – capítulo III
– Agora é que vamos ver quem é que vale ouro – gritou seu Honório, que
apostara alto no Cetembrino. Ele cutucou o parceiro de anos, o velho Tibúrcio,
e o percebeu com o olhar perdido para uma guria da arquibancada. “Tibúrcio não
é disso”, pensou, “o que será que aconteceu. O velho anda tomando algum chá de
ervas novo?”
Honório olhou o amigo com uma ponta de inveja e esqueceu a carreira lá
adiante. O médico lhe avisara que essas coisas não eram para um cardíaco da
idade dele e que fosse tratando, sim, de dependurar as chuteiras.
Agora era apostar nas corridas, varar as noites no carteado e sentir
nesses prazeres que a vida ainda podia lhe dar... Podia? O velho esqueceu a
carreira, os cobres que apostara no guri, e bateu com as mãos nas suas pernas:
– Eta merda de mundo!.
Enquanto isso, o baio do Cetembrino falseava uma das patas da frente e
vinha com todo o peso esborrachar-se no chão. O guri, sem pestanejar, soltava
as rédeas e se jogava pro lado. Cetembrino evitava cair com o cavalo e nem dava
chance do animal vir por cima dele. A plateia da arquibancada levantou-se num
átimo e Tibúrcio pulou para o chão firme, saindo correndo na direção do filho.
Todos os homens correram para ver de perto o acidente e nem notaram o
castelhano cruzar sozinho o fita de chegada.
Valquirinha ficou de pé, as duas mãos em concha cobrindo parte do rosto,
os olhos vibrando de espanto, medo e admiração.
– Será que o riquinho se machucou? – Valquirinha perguntou baixinho para
a amiga. As duas logo viram Cetembrino caminhando entre a multidão e sorriram
uma para a outra.
– O menino é um taura – disse a outra – um pequeno galinho. Logo vai
estar ciscando por aí e encontrando uma ou outra galinha assanhada, não é
mesmo?
As duas amigas riram novamente e nem notaram que Honório as observava.
“O Tibúrcio pega uma delas, tenho certeza. Aquela, a mais risonha e de blusa
encarnada”, pensou com raiva, muita raiva, sentindo que suas pernas pesavam,
seu corpo pesava, e não tinha jeito de aceitar que a vida o deixara feito
traste velho, imprestável.
Cancha reta
Antônio Cândido de Azambuja Ribeiro – capítulo final
Logo CTG, abrindo
caminho entre o povo que se aglomerava em torno dele, todos entre surpresos e
encantados com a agilidade do ginete, se aproximou de Valquirinha e de sua amiga,
com largo sorriso iluminando seu rosto magro e anguloso. De forma irresistível
os dois se tocaram e trocaram um rápido, mas caloroso abraço, sob o olhar
rancoroso de Honório. Este, observando a cena, como se olhasse para lugar
nenhum, esboçou um leve esgar de surpresa, como se perguntasse: “Mas como, não
é o Tibúrcio que está pegando a guria? Ou – pensou quase em voz alta – os dois
a pegam, sem que um saiba do outro?” E, concluindo o pensamento, disse para si
mesmo: “Se for assim, hoje os dois ficarão sabendo!”
Os olhares estavam
voltados para o jovem casal. Todos pareciam ter esquecido de que a carreira
tivera um vencedor e que este, mais o proprietário do cavalo mouro e uns poucos
apostadores que acreditaram no uruguaio e no pingo desconhecido estavam já a
reclamar a proclamação da vitória e o pagamento do que lhes era devido.
Tibúrcio, que vira a
cena do abraço e, mesmo feliz com a destreza do filho na rodada do baio, não se
conformava com o e interesse de Cetembrino pela pinguancha, se aproximou dos dois,
pigarreando para chamar a atenção. Nisso, Honório se junta a eles e,
transtornado, em alto e bom som, pergunta:
– Mas, afinal, tchê,
quem tá comento a guria? O pai? O filho? Ou os dois? CTG e Tibúrcio viram-se ao
mesmo tempo para Honório com ar interrogativo, como se não tivessem entendido o
questionamento do velho paisano. Este, vendo que fizera bobagem, mas consciente
de que era tarde para retroceder, transforma as perguntas em afirmações:
– Pois então, pelo que
tô entendendo do que vejo, les digo: Tibúrcio e Cetembrino tão pegando a guria
de encarnado e parece que um não sabe do outro!
Pai e filho se olharam
com olhar inquisitório e raivoso, como se ambos esperassem o desmentido um do
outro. Mas o silêncio predominou.
Quando Valquirinha
quis falar, um indistinto “cala a boca!” a emudeceu e Honório, vendo que as
coisas fugiam a qualquer possibilidade de controle, também abriu a boca
pretendendo dizer alguma coisa, qualquer coisa que servisse para distender o
ambiente pra lá carregado que se criara por sua culpa. Mas foi Tibúrcio quem
falou, enquanto gesticulava, tentando se afastar do meio do redemoinho, dedo
apontado para Honório:
–Tu não te mete,
lacaio!
E, finalmente, como se
se desse conta do que estava acontecendo, como que para evitar uma desgraça,
acrescentou:
– Meu filho, esse
ordinário fiadaputa está fazendo intriga! Deve ser de raiva, porque,
quando a gente era moço, eu comia a mulher dele!
– Tu não ofende a
finada! – redarguiu Honório.
Alheio a esse diálogo
meio sem nexo, CTG, parecendo cegado pelo ódio, afirmou que as coisas seriam
esclarecidas ali mesmo, “à bala, se necessário”.
O povo se afastou,
abrindo um círculo no meio do qual ficaram Valquirinha, Cetembrino, Tibúrcio e
Honório. E em seguida, na blusa encarnada de Valquirinha, uma mancha escura se
esparramou ligeira, a partir de um rasgo aberto em seu peito. A moça caiu, com
um leve e quase imperceptível gemido, braços estendidos na direção de CTG.
Honório, que caiu logo após, sequer gemeu. Morreu satisfeito com o desfecho da
sua carreira, pois além de não precisar pagar os cobres apostados no baio de
Cetembrino, com a morte pôs fim à sua sina de homem de pouca sorte, que, quando
jovem, fora corno e, depois, mal chegada a velhice, se tornara um traste velho,
imprestável, que nem pra rufião servia. E, de alguma forma, se vingava de
Tibúrcio!
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