Sem Sangue chimarreava, pensativo, ao pé do braseiro.
Lembrava de que quando gurizote peleou na Revolução
Federalista de 93. Era o assistente do
coronel maragato Adão Latorre. Naquela campanha foram responsáveis por mais de
300 degolas de pica-paus.
Foi num dia muito quente no lugar que ficou denominado
como Potreiro das Almas lá para os lados de Bagé. O guri era conhecido pelos
rebeldes por João Faz Tudo. Ele que amarrava os prisioneiros deixando pronto
para o Adão Latorre. O guri foi prestativo nas degolas, zombarias e humilhações
de pica-paus. Depois daquele dia passou a chamar-se João Sem Sangue e, logo
em seguida, apenas, Sem Sangue. Na maioria das vezes tinha olhar parado e
gestos lentos. Diante de tamanha selvageria no ato da degola Sem Sangue
permanecia indiferente. Calmo e frio como se estivesse pitando um palheiro
feito a capricho. Agia com frieza e com a maior naturalidade, inclusive, quando
o primo Juan – do lado chimango e mais castelhano da família – implorou pela
vida. Sentindo o calor do aço da adaga de Latorre no pescoço fez sua derradeira solicitação.
– João! A gente pescava junto... a gente era parceiro
nas barranqueadas... João pelo amor de Deus e de nossas mãezinhas...
Latorre olhou para Sem Sangue como quem diz “e agora
guri”, mas Sem Sangue não moveu um músculo da face sequer. E seus olhos fitaram, como último adeus, os olhos de súplica de Juan. Ainda segurando o corpo inerte
de Juan, Latorre perguntou.
– Era teu primo Sem Sangue?
– Era – foi a resposta seca e completou. – Eu nunca
fui numa pescaria e nunca barranqueei – virou as costas e saiu.
E agora passados todos esses anos, depois de
tropeadas e andanças araganas, Sem Sangue lutava nas tropas de Zeca Neto na
campanha de 23. Seguia os ideais de Assis Brasil. Mais uma vez um confronto
sangrento entre chimangos e maragatos. Continuava ágil e frio o velho Sem
Sangue de guerra.
Os gritos do passado eram um turbilhão de vozes aflitas
que martelavam sua mente. Então, percebeu diante de seus olhos a imagem do
primo Juan pedindo “pelo amor de Deus e as nossas mãezinhas”.
Sem Sangue sorveu mais um mate, tomou um trago de
cana e ajeitou as lenhas no braseiro. Amolou a adaga num rebolo e secou num saco
de farinha. Saiu do barracão a passos lentos e olhos parados.
– Onde estão os chimangos?
(*) 3º lugar no 2º Concurso de Causo Gauchesco Apparicio Silva Rillo, promovido pela Estância da Poesia Crioula.
(*) 3º lugar no 2º Concurso de Causo Gauchesco Apparicio Silva Rillo, promovido pela Estância da Poesia Crioula.
Um comentário:
É a primeira vez que ouço falar desse ajuda do Satanás.
Postar um comentário