segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Um copo de água

Num sobressalto, levantei com uma sede absurda e um mal-estar insuportável. Levei, desesperadamente, a mão à garganta porque o ar me sufocava. Fui direto à cozinha e sorvi, afoitamente, num gole só, um copo de água. Um copo de água era tudo o que eu queria naquela manhã.
Nesse instante, percebi que minhas mãos estavam mais enrugadas e trêmulas e meu rosto estava mais velho. Eu virara um ancião com uma vasta cabeleira branca. A água que eu sorvia tinha o gosto de ácido e era salobra. Tudo em meu redor parecia mais gasto, mais usado, mais velho, mais antigo. Então, naquele tempo velho e desbotado em que me encontrava, lembrei de uma premissa de Heráclito: não nos banhamos duas vezes no mesmo rio – e complementei – não bebemos duas vezes o mesmo copo de água.
Dei-me conta que estava no futuro e de minha janela eu não via mais a corticeira florida de outros tempos e no riacho em frente, que outrora garças e marrecos faziam festa, urubus disputavam carniças com os corvos e lixos esparramados.
No futuro eu estava envolto em fuligens, minha cidade era uma nuvem preta provocada por chaminés ensandecidos e ruídos agressivos. Na moldura da janela o quadro era em preto e branco. Muito cinza pelas bordas.
Na tela dos meus olhos os pássaros voavam em círculos, sem saber para onde ir. As praças e ruas eram áridas e os bosques não existiam mais. As ruas, malcheirosas, sob uma neblina densamente preta. Eram corredores do desespero.
No fundo do copo com água eu vi um planeta carente, com fome e com sede. Um planeta que não reconhecia a natureza e desconhecia o futuro. Se consumia aos poucos e lentamente. Pessoas perambulavam a esmo por plantações de milho ressequidas pela estiagem. Vagueavam como ermitões com olhos esbugalhados, pés descalços e agasalhos rotos. As cidades eram cemitérios de concreto, aço e mortos-vivos.
Diante dos meus olhos, um mar de detritos por sobre os rios. Fileiras de animais esquálidos e doentes, errantes pelas margens. Homens e mulheres rogando aos céus por um copo de água, um pedaço de pão e algumas gotas de chuva. Mas o presente que vinha do infinito era, apenas, mais uma tempestade de chuva ácida.
Nas ruas dos grandes centros, carros parados por falta de combustível. Nas ruas das cidades pequenas, carros parados por falta de combustível. Nas ruas de todo o planeta, humanos famintos por falta de comida. Por detrás das portas e janelas, olhares estranhos e corpos vazios. Por detrás dos escombros noturnos, corpos ardidos e olhares frios.
Com esse copo na mão diante de minha janela é impossível ser lúdico. Há algo de sólido nesse ar que respiramos. Um sabor de sal nessa água que bebemos. Um cheiro de enxofre nessas páginas matinais. Assim, nesse instante, percebi que há alguns anos foi previsto que a água seria uma bebida de luxo. Poucos teriam acesso a um banho diário. E que, sob nossos pés, havia uma imensa quantidade de água chamada Aqüífero Guarani. E, hoje, esse lençol de água, vasto e límpido, em outras eras era tomado pela escassez que reinava em todas as atitudes humanas. O Aqüífero Guarani estava acabando e com ele o que havia sobrado dos homens, mulheres e crianças. Ou qualquer espécie de vida sobre a Terra.
Acordei num sobressalto e banhado de suor. Levantei com uma sede absurda e um mal-estar insuportável. Levei, desesperadamente, a mão à garganta porque o ar me sufocava. Fui direto à cozinha e sorvi, afoitamente, num gole só, um copo de água. A água estava cristalina, fresca e saciou a minha sede e me revigorou. Ainda pude observar, pela janela, a corticeira florida e no riacho logo adiante, garças e marrecos faziam algazarra.
Refeito do mal-estar voltei à cama para dormir mais alguns minutos. O meu mundo ainda não estava desfeito, o planeta ainda tinha salvação. Satisfeito, adormeci.

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