terça-feira, 23 de dezembro de 2008

No dia dos meus 90 anos *

No ano de meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem.
Seria inadmissível não começar esta crônica com a instigante primeira frase do livro Memória de minhas putas tristes de escritor colombiano Gabriel Garcia Marques. Uma frase sintomática que ilustra com grandeza literária esse primeiro parágrafo.
Em outubro de 2050 eu farei 90 anos.
Tenho algumas dúvidas se no dia dos meus noventa anos eu vá desejar um louco amor com uma adolescente virgem ou, simplesmente, folhar, modorramente, um jornal de páginas amareladas de um passado infinito. No dia dos meus noventa anos quero estar lúcido para sentir presente todos os momentos de minha jornada. Tomarei uma xícara de chá verde e comerei alguns biscoitos integrais. Caminharei por uma estreita ruela como se fosse buscar novas notas para velhas melodias. Pela tarde, tomarei quarenta gotas de própolis misturados em um copo de água. Incrivelmente, o preço desse copo de água será equivalente ao custo de uma garrafa da cerveja Patrícia em Rivera nos dias atuais.
No dia dos meus noventa anos quero ter uma bengala com cabo de prata e alpargatas feitas sob encomenda. Quero usar um chapéu palha e um lenço ao pescoço, que deverá ser, necessariamente, vermelho. Quero ser ranzinza na minha solidão e alegre e bonachão quando estiver com meus amigos. Terei apenas uma única atividade reler meus livros favoritos e escrever as minhas memórias. Memórias tristes e alegres, enfim, todas as minhas memórias.
Sestearei em uma cadeira de balanço e nesse vai e vem da cadeira planejarei um futuro com fortes emoções, passeios e algum esporte radical: uma partida de xadrez ou uma canastra em algum obscuro boteco.
Após longas caminhadas, deitarei sobre um banco num parque com iluminação artificial e uma cobertura que me protegerá das radiações. Sonharei com os anos em que o mundo despertou para a tecnologia da informática, mas, também, para a violência e o terrorismo. Não quero ter em meu vídeo de imagens, trágicas de adolescentes em disparada nos seus veículos estrelares. Não quero pressentir a guerra de raios entre nações e nem a miséria dos continentes pobres. No dia dos meus noventa anos não quero ver o planeta em chamas por falta de água e por galhos secos em desertos cada vez mais avassaladores. Não quero sentir a presença de uma bala perdida e nem vassalos assaltantes em arrastões no que restou de nossas praias, avenidas e calçadões.
No dia dos meus noventa anos estarei pronto para enfrentar as emoções da virada do ano e a última Copa do Mundo de futebol no Uruguai. Quero sentir as emoções das derrotas e das vitórias do Internacional. Quero assistir a um Gre-Nal no Beira-Rio e sentir que coloradinhos sonham com os olhos brilhantes por vitórias de seu time. Quero passear pelo Parque da Redenção com minha amada, com os netos, bisnetos e tataranetos e sentir que o mundo continua rodando na velocidade de uma bala de canhão.
Quero tomar um cálice de vinho tinto e sentir todos os aromas das frutas vermelhas e perceber o seu intenso rubi. Ainda quero passear sob as vinhas e sobre plantações de trigo. E saborear o ar úmido das manhãs. Quero molhar meus pés em algum riacho artificial com águas naturais e sentir o cheiro da grama ou da terra molhada como se estivesse em algum capão de mato na primavera de 1950. Quero bailar solitário em minha varanda e sonhar com uma reunião dançante no distante aniversário de quinze anos de minha filha.
No dia dos meus noventa anos eu não verei resquícios de verde. Receio que não terei um copo de água potável para saciar a sede. Talvez não lembre mais de que o céu tenha sido de um azul intenso. E que em um longínquo horizonte, no passado, havia um intenso alaranjado para contemplar.
No dia dos meus noventa anos quero estar lúcido para reler essa crônica em algum livro sem capa perdido no meio de uma estante de uma inabitada biblioteca pública.
No dia dos meus noventa anos... quero sorrir diante do espelho e afirmar: valeu a pena!

* Menção honrosa UFF – Universidade Federal Fluminense de Literatura 2008 (Tema: Planeta Terra 2050)

Um comentário:

Anônimo disse...

Em outubro de 2050 vou estar com 67 anos. Se meu plano de previdência privada cumprir o que promete hoje, vamos aproveitar esta data e viajar pelo mundo. Creio que valeria a pena conhecer Barranquilla, onde Gabito moldou sua literatura.
Feliz Natal!